A estratégia utilizada pelo constituinte de 1988 para cuidar das serventias do foro extrajudicial, os antigos “cartórios”, foi a mais inteligente e exitosa. Outorga-se a atividade estatal um particular, que a exercerá em caráter privado, sem que o governo invista um centavo na serventia.
Não é um particular qualquer, mas alguém recrutado mediante severo concurso de provas e títulos, cuja organização incumbe ao Judiciário, função que também cuidará da fiscalização, controle, orientação e acompanhamento de tais serviços. Optou-se pela figura jurídica da delegação, cuja continuidade está condicionada aos bons serviços prestados pelo delegatário.
Houvesse o constituinte utilizado idêntica alternativa para outros serviços públicos e, provavelmente, o Brasil estaria hoje em situação mais favorável do que a prenunciada. Setores essenciais para o desenvolvimento da Nação encontram-se adstritos à gestão direta do governo e padecem de males praticamente insolúveis, enquanto não se atingir estágio civilizatório compatível com as nossas necessidades.
A partir dessa opção do constituinte, as delegações extrajudiciais se esmeraram e deixaram o próprio Judiciário, seu controlador, em situação de evidente desvantagem quanto ao uso das modernas tecnologias.
É o que explica o surgimento das Centrais Eletrônicas, que hoje permitem consulta online e suprem a dificuldade de locomoção física do interessado à delegação extrajudicial da qual extrairá a informação.
Todas as cinco especialidades caminharam bem na direção correta: a oferta de um serviço público eficiente, descomplicado, seguro e compatível com as demandas contemporâneas.
Nem sempre a população tem conhecimento de que o novo sistema repercutiu em seu favor. Está ainda entranhada na consciência coletiva a ideia de que “cartório” é uma benesse concedida pelo chefe do poder a apaniguados, submetido à regra da hereditariedade e sinal evidente de burocracia estéril e estiolante.
Já não é assim. Cumpre às delegações extrajudiciais se comunicarem melhor com a sociedade, a cujo serviço foram elas preordenadas. O índice confiança obteve ambicionados pontos. Pesquisa do Instituto Datafolha de dezembro de 2015 apurou que os cartórios são as instituições mais confiáveis do Brasil, dentre as instituições públicas e privadas avaliadas em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Belo Horizonte.
De zero a dez, os cartórios receberam nota 7,6, seguidos pelos Correios com 7,4, Forças Armadas 7,0, Igrejas 6,7, Empresas privadas 6,6, Ministério Público 6,5, Polícia Militar 6,1, Bancos, 6,0 e Governo 4,4.
A população que se serve das delegações extrajudiciais gostaria de que outros serviços também fossem ali realizados, como a emissão de passaportes, o registro de empresas, a emissão do documento único de identidade e a emissão de CPF. Não pode ser desconhecida a circunstância de existirem 13.627 delegações extrajudiciais espalhadas por todos os 5.570 municípios brasileiros. O Registro Civil das Pessoas Naturais está em todos os distritos. Lugarejos com poucos moradores, não dispõem de polícia, nem de qualquer outro equipamento público. Mas o registrador civil é a única presença do Estado naquela localidade.
O Registro de Imóveis cumpre um papel essencial na garantia de um dos direitos públicos fundamentais mais caros ao cidadão: a propriedade. O espírito de coesão entre seus titulares gerou inúmeros benefícios para o Brasil. Desde 2013, existe a Central Registradores de Imóveis, criada pela ARISP – Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo, entidade que congrega órgãos análogos de outros dez Estados da Federação. A Central Registradores é uma plataforma online que integra dados e serviços disponibilizados pelo Registro de Imóveis. Até abril de 2019, contabilizava mais de 871 milhões de acessos, tanto do poder estatal, como do civil interessado em obter informações fidedignas.
Também existe um Sistema de Gestão Ambiental integrado, com identificação das melhorias no sentido de minimizar ou neutralizar os impactos ao meio ambiente. A consciência ecológica dos Registros de Imóveis começa dentro de casa. Procedeu-se a adequação dos locais aos moldes sustentáveis, mediante substituição de insumos, acessórios e produtos e de uso das mais modernas tecnologias, dentre as que resultem na consecução dos objetivos que se buscam: menor impacto ambiental e sustentabilidade.
A Central Registradores de Imóveis integra hardwares e softwares de suporte ao serviço de Registro Eletrônico de Imóveis – SREI, previsão da Lei 11.977, de 7.7.2009 e disciplinado no Provimento CNJ 47, de 19.7.2015. Seus principais serviços já oferecem certidão digital ou em meio físico, matrícula online, e-protocolo, pesquisa prévia, pesquisa de bens, repositório confiável de documento eletrônico, intimações/consolidação SEIC, Regularização Fundiária, Usucapião extrajudicial, correição online e monitor registral.
A utilização do ofício eletrônico poupou a elaboração de ofícios, sua confecção, a utilização de envelopes, o custo e o tempo da remessa. Desde sua implementação, acelerou-se a pesquisa de bens pelo poder público junto ao Registradores Imobiliários. O sistema disponibiliza informações às autoridades e servidores designados, mediante autenticação com certificado digital, padrão ICP-Brasil. Em 2017 foram atendidas 56.790.191 transações e em 2018, esse número superou a casa dos 70.247.652 ofícios eletrônicos expedidos, recebidos e respondidos.
A penhora online propicia ao Judiciário efetivar penhora, arresto e sequestro de bens, sem a burocracia da elaboração de ofícios, remessa e a demora na tramitação desse meio físico. Foram 44.760 pedidos de penhora em 2017 e 51.903 em 2018. Enquanto isso, a pesquisa de bens na penhora online atendeu a 88.747.626 casos em 2017 e a 94.984.244 em 2018.
A maior contribuição do sistema registral imobiliário para o Brasil de nossos dias foi a CNIB – Central Nacional de Indisponibilidade de bens. Um sistema de alta disponibilidade, criado e regulamentado pelo Provimento 39/2014 da Corregedoria Nacional de Justiça. seu intuito é integrar todas as indisponibilidades de bens decretadas por juízes e autoridades administrativas. Confere-se eficácia e efetividade eletrônica às decisões judiciais e administrativas de indisponibilidades de bens, com a disseminação dessa importante informação aos Tabelionatos de Notas e Registadores Imobiliários, além de outros usuários do sistema. Além de proporcionar segurança aos negócios imobiliários de compra e venda e de financiamento de imóveis e outros bens, serviu a operações como a Lava-Jato, considerada pela sociedade brasileira como um ponto de inflexão nas más práticas políticas da República.
Desde seu início, a CNIB tem registrado um crescimento exponencial, circunstância que atesta sua utilidade, reconhecida por todo o sistema construído para coibir a corrupção e a incestuosa relação entre governo e empresariado no Brasil. Em 2017, foram 134.510 ordens cadastradas e foram 179.866 em 2018.
O trabalho de atualização e aprimoramento do Registro de Imóveis não para aí. Em fevereiro de 2019, com apoio do Ministério da Economia, a Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo – ARISP e a sua entidade co-irmã carioca, ARIRJ, lançaram os Indicadores do Registro de Imóveis do Brasil. Sistema desenvolvido a partir de dados reais obtidos no Registro de Imóveis, o objetivo é obter a melhoria do ambiente de negócios no Brasil, mediante fornecimento ao mercado, cidadania e poder público, informações confiáveis e de qualidade. Com divulgação mensal, os indicadores são disponíveis para entidades, governo e público em geral no portal www.registrodeimoveis.org.br
Sabe-se o quanto o Brasil depende de investimento internacional. A segurança jurídica em relação à propriedade imobiliária é um dos fatores que estimulam ou fazem fenecer o interesse dos investidores. A eficiência do Registro Imobiliário pode ser um eficaz estímulo a que o dinheiro à espera de boas perspectivas tome o destino do Brasil, o que é essencial para a retomada do desenvolvimento, após décadas perdidas e que não voltam mais.
Outro tema que o Registro de Imóveis encara com carinho é a regularização fundiária. Sabe-se que mais de 60% do território brasileiro padece dessa mácula que entrava o progresso: a situação dominial irregular. Basta acompanhar o histórico da propriedade imobiliária no Brasil e se compreenderá a dificuldade de sanar tal panorama. O território desta Nação fora formalmente repartido entre Portugal e Espanha, pelo tratado de Tordesilhas. Só que a ocupação passou por inúmeras fases. Governos Gerais, capitanias hereditárias, posse contínua por parte de degredados e viajantes clandestinos. Na verdade, o titular dominial por uso contínuo era o indígena. Mas ele foi vítima de genocídio e, praticamente, desapareceu.
Houve o registro paroquial, as sesmarias, as cartas de data. A grilagem se manteve no decorrer dos séculos. Há Estados da Federação que têm vários “andares” de registros. A ARISP, por sua Universidade Corporativa, a Uniregistral, já tem um curso EAD elaborado com todo critério de objetividade, singeleza e adequação às necessidades brasileiras nessa área.
É preciso ir além e converter o Registrador Imobiliário no protagonista capaz de liderar o processo, que necessita de vários profissionais e se desenvolve em inúmeras fases. O interesse não é das delegações extrajudiciais, senão de uma República em busca de credibilidade e de condições aptas a retomar a restauração dos costumes e a aceleração de programas destinados a reduzir a desigualdade e a promover o bem de todos os que aqui residem.
Os desafios postos às delegações extrajudiciais são idênticas àquelas enfrentadas pelo mercado e pela cidadania. É importante que a nacionalidade acorde para a falência da Democracia Representativa em todo o planeta. Ninguém mais se sente representado. O representante falhou e procurou apenas atender aos seus próprios e mesquinhos interesses. Desvinculou-se da vontade do mandante. Este se cansou. As eleições brasileiras de 2018, assim como as americanas de 2016, mostraram que a velha política não tem mais vez. Os vencedores foram aqueles que se dirigiram diretamente ao eleitor, dispensando o canal partidário. Os partidos estão em frangalhos. Subsistirão, como arqueologia cultural que, numa sociedade complexa, permite a convivência de várias eras geológicas, na resistência do velho que não quer sair de cena e pretende impedir – ingloriamente – que o novo se aproprie de seu antigo espaço.
Com isso, a cidadania tem de assumir protagonismo para a gradual implementação da Democracia Participativa. Esta não pode prescindir de pessoas que busquem seu destino mediante esforço, sacrifício, empenho e trabalho insano e incansável. As delegações extrajudiciais estão à frente de outros setores, porque tiveram de assumir caminhos desvinculados de apoio estatal. Ao exercerem a atividade estatal delegada por sua conta e risco, souberam imprimir à atuação um espírito empresarial e suplantaram, em iniciativas criativas e empreendedoras, o próprio poder que tem a missão constitucional de fiscalizá-las – artigo 236 da Constituição da República.
Não ignoram que a sociedade que imergiu, de forma irreversível, na Quarta Revolução Industrial, está hoje submetida a uma profunda mutação, cujo futuro é indescritível. Sabe-se que o mundo nunca mais será o mesmo, mas é arriscado exercer a instável prática da futurologia.
Inteligência artificial, a manipulação dos algoritmos, a internet das coisas, as novas dimensões para o trabalho, a nanotecnologia, a robótica, o avanço contínuo das tecnologias em convívio com a biologia, a engenharia, tudo mesclado e tudo em correlação contínua, forçará inúmeras atividades a se reinventarem. 702 profissões estão na mira da extinção. Outras serão necessárias, mas a educação fundamental e o ensino médio não estão preparados para qualificar os excedentes de mão-de-obra sepulta. O que fazer com milhões de desempregados que não serão mais “empregáveis”?
Nesse porvir incerto, onde o que prevalecerá será o inesperado, o setor extrajudicial saiu à frente. Por enfrentar antes a tempestade do abandono, de ter de trilhar caminhos ásperos sem a tutela estatal, inovou, ousou e obteve êxitos.
A competitividade contemporânea não deixa margem a sossego. Há setores que prometem realizar os serviços hoje atribuídos às delegações extrajudiciais com rapidez maior, eficiência a ser comprovada e menor custo. Não se reduza a influência de estamentos sempre muito íntimos ao Estado e a seus dignitários. Por isso, é preciso coesão dos cérebros adestrados a partir da adoção dos concursos públicos e fazer com que surjam ideias intestinas de preservação de uma prestação pública imprescindível à segurança jurídica.
O momento é de evidente turbulência. Há o movimento dos que sustentam a estatização, na mão contrária do que se apregoa como o racional, que é a privatização. Chegam a pleitear a extinção dos cartórios e a adotar uma assunção estatal ampliada de atribuições hoje cometidas aos registros. O papel das Centrais seria entregue ao Estado, que criaria a sinecura de várias estruturas e se despediria de qualquer utopia de redução de custos para a manutenção dos serviços.
Contendem, ao lado deles, os que defendem a redução das serventias, em privada assunção das tarefas que as delegações hoje exercem, com um controle centralizado por um organismo particular.
Outro grupo, talvez minoritário, propõe a criação de um sistema de identificação dos dados nos cartórios, com a implementação de uma Central Informativa ao estilo “Google”, com a permanência de tais dados sob a custódia dos registros. Algo a ser gerido pelo CNJ, até se instituísse uma pessoa jurídica de direito público.
Não se sabe, até o momento, qual a tese que sairá vencedora. Mas desse debate hão de participar todos os interessados, principalmente o mercado, que é o destinatário mais confiável para emitir juízo de opinião sobre o funcionamento das delegações extrajudiciais brasileiras.
A Quarta Revolução Industrial imporá a adoção de tecnologia hábil a concretizar a prestação dos serviços extrajudiciais de maneira a mais eficiente, célere, descomplicada, menos dispendiosa e crescentemente segura. Para isso, defende-se o fortalecimento da independência jurídica do delegatário. Este precisa também se desvincular da anacrônica cultura de ser uma autoridade estatal, de acesso dificultado, soberano em sua delegação, mas imbuir-se da consciência de que é um servidor da cidadania. Qualificado sim, diferenciado, sim, mas servidor. Sempre servidor. Ver o povo como seu patrão. E o patrão, no capitalismo, tem sempre razão. Sob outra ótica, ele é o consumidor do serviço prestado. E o consumidor tem seus direitos e sua garantia ao melhor bem e serviço.
Uma proposta de imediato é fazer com que todos os delegatários deixem de ser agentes de fiscalização do Estado, sob suas várias exteriorizações, e priorizem a natureza da prestação que lhes está afeta. Um exemplo: o que se considera como excesso burocrático em relação ao registrador de imóveis, como a exigência de alvará de construção, alvará de demolição, habite-se, ou comprovação de satisfação tributária, não deve ser motivo impediente de registro.
É instigante o momento em que o Brasil se encontra. Depois de perder o trem da história e de deixar sua indústria sucatear, pouco resta a esta República senão repensar-se e tentar oferecer ao planeta aquilo que o brasileiro pode realizar de maneira mais satisfatória do que outros povos.
A imensidão do território, sua biodiversidade, suas belezas – enquanto não forem sumariamente destruídas pela sanha dendroclasta e pela ignorância galopante de quem deveria dar o exemplo – pode atrair estrangeiros para se tornar um destino obrigatório. Turismo, aquisição de áreas no litoral ou na floresta, manutenção de reservas florestais, projetos de reflorestamento, tudo tem condições de convencer o capitalista a ver o Brasil com outros olhos. Mas isso depende mais de nós, do que do alvo a ser persuadido.
Ajustar os Registros Públicos à eficiência que a Quarta Revolução Industrial pôs à disposição dos povos civilizados, é um passo a se pensar. E não é dos menos importantes nessa missão redentora da Pátria e essencial para garantir o amanhã das gerações vindouras.
_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, a Universidade Corporativa da ARISP-Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo. Foi Corregedor Geral da Justiça em São Paulo e presidiu o Tribunal de Justiça Paulista.