José Renato Nalini
A crise econômico-financeira deste 2009 gerou reações em todos os níveis. Chegou à casa de todos, pois quem não pode deixar de comprar alimentos já sentiu na pele o custo acrescido de quase tudo. Quantas famílias não têm desempregados nela mesma ou em grupos de convívio?
Um aspecto perverso é o uso da crise para justificar todos os “não” que as pessoas ouvem quando expõem suas pretensões. A crise, agora, legitima a tendência natural que é primeiro negar o pleito, sem mesmo refletir sobre alguma das maneiras de atendê-lo, ao menos em parte.
É o pessimismo, acompanhado de um certo fatalismo conveniente, a acompanhar os sintomas do descontrole global, tangido pela invencível vontade de ganhar dinheiro.
Mas o que se propõe como reflexão, hoje, é um aspecto muito particular desta situação em que todos estão imersos. É um certo favoritismo que todos os governos do mundo estão conferindo à indústria automobilística. As montadoras já receberam 54 bilhões de dólares de auxílio. Esse montante equivale a 36 vezes o valor da GM nos Estados Unidos.
Enquanto nos Estados Unidos os empréstimos de longo prazo são em troca da reestruturação que elimina, só no caso da GM, mais de 20 mil vagas, no Brasil não há compromisso formal no sentido inverso. Ou seja, não prometem as montadoras manter os empregos.
A Europa, mais madura e acostumada a vivenciar fases difíceis, obriga em contrapartida que a indústria automobilística produza carros menores e menos poluentes. No Brasil não se fala nisso. O que é que se poderia exigir às montadoras? Se eu fosse governo, imporia responsabilidade ambiental muito mais consistente do que fabricar veículos que não sejam verdadeiras máquinas de envenenar.
Como se faria isso? Conferindo obrigações de que até hoje esse privilegiado setor não enfrenta. O intuito da montadora é multiplicar os veículos, proceder alterações de desempenho, às vezes modificações minúsculas de design que justifiquem a compulsiva troca de carro a cada dois anos e a forçar a geração de necessidades artificiais numa civilização tangida pelo combustível poluidor.
Agora mesmo, as revendas fazem shows de ofertas, colocam desde fantasiados a atrair crianças e moças bonitas agitando estandartes para chamar a atenção de futuros compradores. Nada contra o lucro ou a vontade de faturar. Mas em momentos sérios, é exigível uma responsabilidade acrescida.
Depois do carro vendido – e quem sai da revenda com um carro zero quilômetro, se voltar em seguida já terá uma perda significativa no valor – coisas inexplicáveis em economia! – a montadora se desinteressa do destino do seu produto.
Isso faz com que o Brasil seja o País dos desmanches. Carros velhos continuam a circular enquanto se consegue dar-lhes um sopro de vida. Paradoxalmente, quanto mais velho e poluidor, menos paga para circular. O resultado é que muitos brasileiros sem condições circulam de carro. Deixam de comprar comida, mas abastecem o veículo. E quando não podem mais, abandonam o carro em qualquer via pública, terreno baldio ou ferro-velho.
É hora de fazer a montadora se responsabilizar pelo destino de seu produto. Assim como já ocorre com outras coisas perigosas – pilhas, por exemplo – a recolha deve ser obrigação de quem produziu. Não é apenas a natureza que agradecerá. É claro que as carcaças que enfeiam tantos espaços não contribuem em nada para a qualidade de vida cidadã. Mas também se refreará um comércio que, característico de um estágio inferior de civilização, também fomenta as atividades ilícitas. O desmanche serve a estimular o furto de veículo. Há quadrilhas envolvidas nessa atividade, hoje também utilizada para fornecer ao vendedor de peças aquela que falta em seu estoque.
Se a empresa se vir obrigada a responder pelo destino de seu carro, ela é que providenciará a recolha do veículo quando inservível. Isso fará com que repense a produção. Estimulará a reciclagem. Tudo poderá ser reaproveitado, se houver uma política responsável de produção. A cidade ficará limpa. Os desmanches cederão lugar a outras atividades, assim como o grande número de pessoas que se dedicava à indústria do outdoor encontrou destino para exercer tarefas diversas e não houve qualquer drama nesse exemplo que Gilberto Kassab ofereceu a todo o mundo quando passou a governar São Paulo. Não é hora de se pensar nisso e dar mais um exemplo ao mundo?
José Renato Nalini é Desembargador da Câmara Ambiental do Tribunal de Justiça de São Paulo, autor de “A Rebelião da Toga”, Editora Millennium, 2006. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.