Blog do Renato Nalini

Ex-Secretário de Estado da Educação e Ex-Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Atual Presidente e Imortal da Academia Paulista de Letras. Membro da Academia Brasileira de Educação. É o Reitor da UniRegistral. Palestrante e conferencista. Professor Universitário. Autor de dezenas de Livros: “Ética da Magistratura”, “A Rebelião da Toga”, “Ética Ambiental”, entre outros títulos.


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Chega de gratuidade

José Renato Nalini


A crise econômico-financeira deste 2009 gerou reações em todos os níveis. Chegou à casa de todos, pois quem não pode deixar de comprar alimentos já sentiu na pele o custo acrescido de quase tudo. Quantas famílias não têm desempregados nela mesma ou em grupos de convívio?


Um aspecto perverso é o uso da crise para justificar todos os “não” que as pessoas ouvem quando expõem suas pretensões. A crise, agora, legitima a tendência natural que é primeiro negar o pleito, sem mesmo refletir sobre alguma das maneiras de atendê-lo, ao menos em parte.


É o pessimismo, acompanhado de um certo fatalismo conveniente, a acompanhar os sintomas do descontrole global, tangido pela invencível vontade de ganhar dinheiro.

 

Mas o que se propõe como reflexão, hoje, é um aspecto muito particular desta situação em que todos estão imersos. É um certo favoritismo que todos os governos do mundo estão conferindo à indústria automobilística. As montadoras já receberam 54 bilhões de dólares de auxílio. Esse montante equivale a 36 vezes o valor da GM nos Estados Unidos.


Enquanto nos Estados Unidos os empréstimos de longo prazo são em troca da reestruturação que elimina, só no caso da GM, mais de 20 mil vagas, no Brasil não há compromisso formal no sentido inverso. Ou seja, não prometem as montadoras manter os empregos.


A Europa, mais madura e acostumada a vivenciar fases difíceis, obriga em contrapartida que a indústria automobilística produza carros menores e menos poluentes. No Brasil não se fala nisso. O que é que se poderia exigir às montadoras? Se eu fosse governo, imporia responsabilidade ambiental muito mais consistente do que fabricar veículos que não sejam verdadeiras máquinas de envenenar.


Como se faria isso? Conferindo obrigações de que até hoje esse privilegiado setor não enfrenta. O intuito da montadora é multiplicar os veículos, proceder alterações de desempenho, às vezes modificações minúsculas de design que justifiquem a compulsiva troca de carro a cada dois anos e a forçar a geração de necessidades artificiais numa civilização tangida pelo combustível poluidor.


Agora mesmo, as revendas fazem shows de ofertas, colocam desde fantasiados a atrair crianças e moças bonitas agitando estandartes para chamar a atenção de futuros compradores. Nada contra o lucro ou a vontade de faturar. Mas em momentos sérios, é exigível uma responsabilidade acrescida.


Depois do carro vendido – e quem sai da revenda com um carro zero quilômetro, se voltar em seguida já terá uma perda significativa no valor – coisas inexplicáveis em economia! – a montadora se desinteressa do destino do seu produto.


Isso faz com que o Brasil seja o País dos desmanches. Carros velhos continuam a circular enquanto se consegue dar-lhes um sopro de vida. Paradoxalmente, quanto mais velho e poluidor, menos paga para circular. O resultado é que muitos brasileiros sem condições circulam de carro. Deixam de comprar comida, mas abastecem o veículo. E quando não podem mais, abandonam o carro em qualquer via pública, terreno baldio ou ferro-velho.


É hora de fazer a montadora se responsabilizar pelo destino de seu produto. Assim como já ocorre com outras coisas perigosas – pilhas, por exemplo – a recolha deve ser obrigação de quem produziu. Não é apenas a natureza que agradecerá. É claro que as carcaças que enfeiam tantos espaços não contribuem em nada para a qualidade de vida cidadã. Mas também se refreará um comércio que, característico de um estágio inferior de civilização, também fomenta as atividades ilícitas. O desmanche serve a estimular o furto de veículo. Há quadrilhas envolvidas nessa atividade, hoje também utilizada para fornecer ao vendedor de peças aquela que falta em seu estoque.

Se a empresa se vir obrigada a responder pelo destino de seu carro, ela é que providenciará a recolha do veículo quando inservível. Isso fará com que repense a produção. Estimulará a reciclagem. Tudo poderá ser reaproveitado, se houver uma política responsável de produção. A cidade ficará limpa. Os desmanches cederão lugar a outras atividades, assim como o grande número de pessoas que se dedicava à indústria do outdoor encontrou destino para exercer tarefas diversas e não houve qualquer drama nesse exemplo que Gilberto Kassab ofereceu a todo o mundo quando passou a governar São Paulo. Não é hora de se pensar nisso e dar mais um exemplo ao mundo?

 

José Renato Nalini é Desembargador da Câmara Ambiental do Tribunal de Justiça de São Paulo, autor de “A Rebelião da Toga”, Editora Millennium, 2006. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.

 


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Poéticos Sertões

Neste ano do centenário da morte de Euclides da Cunha, muitos eventos lembram o trágico autor de “Os Sertões”. O acadêmico Antonio Carlos Secchin, da Academia Brasileira de Letras, fez uma instigante conferência no CIEE.  Explorou uma face insólita de Euclides: a incursão pela poesia. Na verdade, são três as faces abordadas. A poesia extraída nos Sertões, a crítica poética de seu autor e o poeta Euclides. Alguém sabia que ele também poetou?


Quem lê “Os Sertões”, talvez não tenha pressentido a poesia com que foi escrito. Guilherme de Almeida foi quem primeiro detectou essa característica na obra euclidiana. Escreveu, em 1946, um artigo publicado no Diário de São Paulo, exatamente chamado “A poesia de Os Sertões”.


Cinqüenta e um anos depois, os irmãos Campos – Augusto e Haroldo – voltaram ao tema e publicaram “Os Sertões dos Campos”. Fizeram garimpagem no livro e encontraram inúmeros versos alexandrinos. Um deles: “As linhas essenciais do crime e da loucura”. A leitura que fizeram, tem um viés estetizante, pois recortaram o que é formalmente belo, com certa descontextualização. Quase todos os quase-versos, ou versos involuntários, estão no final do parágrafo. É o que simboliza uma chave de ouro: o arremate enfático e caprichado, que deve ficar soando na memória do leitor.


Notou-se uma preferência pelos decassílabos. Além da métrica euclidiana, Guilherme destacou o poder inventivo de Euclides. Criou, por exemplo, o verso “A Tróia de taipa do sertão” e a figura “centauro bronco” para o sertanejo. Também foi pródigo em elaborar versos livres com base onomatopaica e semeou frases-verso em parágrafos isolados. Produziu, com isso, reverberação e impacto nessas verdadeiras ilhas de alexandrinos ou de decassílabos: “Entra-se de surpresa no deserto”.


As combinações métricas são de oito e dez, dez e doze. Sempre no parâmetro tradicional da métrica portuguesa. A pesquisa também encontrou aliterações na obra: “Tubérculos túmidos de seiva” e “tiroteios durante o dia todo”, assim como sibilações: “Riscando um assovio suavíssimo como um cio acariciador da morte”. Conclui-se, portanto, que se “Os Sertões” não é um poema épico, ao menos recorreu aos métodos da poesia. Conseguiu Euclides fazer uma mixagem combinatória das agruras da prosa rude, com a suavidade poética.


A segunda face é a do Euclides crítico. Pouco se dedicou a criticar poemas alheios, mas era fã de Castro Alves e prefaciou livro de Vicente de Carvalho, a quem auxiliou na oportunidade de disputar uma Cadeira na Academia Brasileira de Letras. Identificava-se com Castro Alves no patriotismo, na confiança convicta no futuro, no apreço ao coletivo. Reviu a obra do baiano e fez interessantes comparações entre o navio negreiro e os transatlânticos, a cachoeira de Paulo Afonso e a utilização da água para produzir energia. Na verdade, espelha-se em Castro Alves e as referências que faz à sua obra, servem para qualificar o próprio Euclides. Este mesmo confessava que introduzia em algumas páginas de seu caderno de matemática, versos de Castro Alves.


O prefácio do livro “Poemas e Canções”, de Vicente de Carvalho, foi um outro exercício de crítica poética de Euclides. Um terceiro texto de Euclides na crítica poética reside no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, ocorrida em 18.12.1907. O patrono da Cadeira é Castro Alves e o antecessor é o fundador Valentim Magalhães, polígrafo e poeta. Dessa fala consta a afirmação de que “o poeta é soberano no pequeno reino onde entroniza sua poesia. Nós, os não poetas, também somos arrebatados pelo sonho. Só que ao invés de projetar a centelha criadora sobre o mundo, é o esplendor do mundo que nos invade e estimula”.

Para Secchin, Euclides da Cunha praticou verdadeiro “estouro da boiada poética”. Cometeu o ilícito conúbio entre substantivos e adjetivos que nunca se encontram. Por fim, Euclides perpetrou poemas. Escreveu 37 poemas no livro “Ondas”, no ano de 1883. Livro que só a lume em 2005, por obra do nosso querido Adelino Brandão, um dos mais devotos euclidianos que o Brasil produziu. Euclides da Cunha, autor de um livro que Secchin chama de “A Bíblia dos livros”, o “Corão”, o “Talmud”, o livro fundador da nacionalidade, não desprezou. Ao contrário, prestigiou e abraçou a poesia. Dentro de “Os Sertões” com sua prosa árida, encontra-se poesia: o sertão poético.

 

José Renato Nalini é Desembargador da Câmara Ambiental do Tribunal de Justiça de São Paulo, autor de “A Rebelião da Toga”, Editora Millennium, 2006. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.

 

 


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Município inconstitucional

José Renato Nalini

 

O Município brasileiro foi erigido à condição de entidade da Federação. Isso aconteceu com a promulgação da Constituição Cidadã de 5.10.1988. Algo que não é normal nas federações, quase sempre integradas pela União e pelos Estados-membros. O constituinte inovou, prestigiou o municipalismo e, sem explicitar, homenageou o Mestre André Franco Montoro. Foi este quem repetiu, inúmeras vezes, que “ninguém mora na União, nem no Estado; as pessoas moram todas na cidade”, ou seja, no município. Mas o que significa integrar a Federação? Qual a conseqüência concreta disso?

 

Aparentemente, nada modificou a condição jurídica do município brasileiro o fato de ter sido ele guindado ao status de ente federativo. Se estiver equivocado, aceitarei – de bom grado – as críticas daqueles que me oferecerem argumentos em contrário.

 

Na experiência de integrar efetivamente durante um biênio o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo e, durante este ano, nele funcionar quando convocado, colho uma sensação de que o município continua na situação em que sempre esteve. Ao menos no plano legislativo, a “promoção” não se fez notar.

 

Faço alusão às ações diretas de inconstitucionalidade reiteradamente promovidas contra atos normativos editados pelos Legislativos locais. Se vier a ser feito um levantamento preciso, não será surpresa a constatação de que mais de 90% das ações diretas de incompatibilidade da lei municipal com a Constituição do Estado são julgadas procedentes. Ou seja: o legislador local não sabe legislar. Quando o faz, vulnera a ordem fundante e seu produto não chega a ingressar no ordenamento.

 

A afirmação é excessiva, reconheço. Mas é feita a partir da generalizada presunção de que inúmeras as propostas irrelevantes feitas pelos edis. A cada final de legislatura – ou do ano legislativo – faz-se a estatística das proposições formuladas pelos vereadores, com a crítica recorrente à falta de consistência do conteúdo de quase todas elas. Comemoração de dias devotados a profissões, oficialização de festas, denominação de logradouros, além de proposições quase folclóricas, compõem o rol das iniciativas parlamentares. O que restou em matéria legislativa para o vereador?

 

O tecnicismo que acomete a quase totalidade dos julgadores entrevê inconstitucionalidade – num paralelismo coerente – em quase tudo. Freqüente decidir-se que a matéria é reservada ao Executivo – fora do qual não há salvação, porque é quem detém a chave do cofre – e então a iniciativa é fulminada pelo vício. Mesmo as propostas que autorizam o Prefeito a agir de determinada forma, a construir algo, a adotar uma política pública, são contaminadas. Diz-se que permitir é tendencioso.

 

Gera uma expectativa que os destinatários podem cobrar do chefe do Executivo. E isso é inconstitucional.Ouso afirmar que é necessário uma revisão desses critérios. O Município é o lugar onde as coisas acontecem. É ali que o Poder Público pode transformar a vida das pessoas. O legislador local tem de ter discernimento e sensibilidade para verificar o que é que ele pode fazer para tornar a vida da cidade mais harmônica, mais digna e, em resumo, mais feliz.

 

Nesta época em que a informática predomina, seria impossível mapear todas as iniciativas dos edis – de todo o Brasil – que não foram fulminadas pela incompatibilidade com a norma fundante e divulgá-las para que os vereadores possam disseminá-las por todo o País?

 

O Brasil dispõe de 3 mil faculdades de Direito. Por que os professores não instigam os seus alunos a promover uma verdadeira revolução no ordenamento jurídico edilício de cada município? Por que não formular aos alunos, como tarefa escolar, a elaboração de projetos de lei?

 

Para algo deve servir a transformação do município, de entidade meramente administrativa que era, em pessoa política da Nação. Ente da Federação brasileira. Descobrir o que isso significa na ordem das coisas, em termos de revalorizar o Parlamento local, é tarefa de todas as pessoas que se preocupam com a implementação integral e com a preservação das conquistas democráticas neste sofrido Brasil.

 

José Renato Nalini é Desembargador da Câmara Ambiental do Tribunal de Justiça de São Paulo, autor de “A Rebelião da Toga”, Editora Millennium, 2006. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.


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Euclides da Cunha e a Constituição

Quem leu “Os Sertões” faz uma idéia da importância de Euclides da Cunha para a literatura brasileira. Também não desconhece que “Os Sertões” foram escritos em São José do Rio Pardo, enquanto o engenheiro civil Euclides construía uma ponte. Ambas as obras ficaram prontas ao mesmo tempo. Inequívoco o paralelismo entre a ponte física e a ponte intelectual, que liga a ignorância ao conhecimento – ou a certa compreensão peculiar – deste fenômeno chamado Brasil.

O que as pessoas não sabem é que esse espírito inquieto se preocupou com outras coisas. Com a situação de penúria das letras brasileiras. Com a pequenez e mesquinhez de espírito da maior parte dos políticos. Ele teve de lutar pela sobrevivência de uma grande família, fazendo cálculos, estudando mapas e merecendo incompreensão generalizada. O que ele desejava era paz de espírito para ler e escrever. É o que diz a Alberto Rangel numa carta escrita em 24.10. 1908: “Demorei-me em responder-te por atender a coisas menos importantes, menos agradáveis – e mais urgentes. Toda a nossa vida é feita deste tributo permanente às frivolidades que a malignam. Gastam-se dias de agitação bárbara e inútil, para se ter uma meia hora de felicidade e paz, como esta”.

Embora engenheiro, com passagem anterior pela carreira militar, interessava-se pelo Direito. Ao agradecer o envio do livro “Constitución Argentina”, de Agustín de Vedia, diz ao autor haver detectado grande afinidade entre os modos de pensar de ambos. Para prová-lo, encaminha ao jurista argentino cópia do discurso que pronunciou para os estudantes de Direito da São Francisco, a propósito de um ex-aluno das Arcadas: o poeta Castro Alves. Ali, afirmou que já pensava em Constituição como outra coisa, pois não se pode dar o nome de Constituição a ensaios efêmeros de estatutos ou regulamentos mais ou menos dispersos.


Uma Constituição é sempre resultante histórica de componentes seculares acumuladas no evoluir das idéias e dos costumes. Uma Constituição não se “faz”, mas “descobre-se”, na conciliação das novas aspirações e novos ideais, com os espaços nunca perdidos das gerações precedentes. Não considerava a Constituição Imperial de 1824 um verdadeiro pacto jurídico, histórico, social, político e econômico, assim como devem ser tais convenções fundantes da nacionalidade. Por admirar a elaboração de um ajuste básico e fundamental para se estabelecer o convívio entre pessoas civilizadas é que se identificou com o povo de São Paulo. Povo que, alguns anos depois, em 1932, pegaria em armas para defender a constitucionalização do Brasil.


Essa admiração já se encontra no artigo “O Batalhão de São Paulo”, que publicou em “O Estado de São Paulo”, de 26.10.1897. Diz  ele que o batalhão paulista que chegou em Canudos mereceu elogios de quantos com ele travaram contato. “Nem uma voz discordante perturbava essa manifestação absolutamente sincera e franca, que ainda perdura e persistirá por muito tempo”. Afirma que a população inteira ficou verdadeiramente surpreendida ante a entrada corretíssima de um batalhão, que acabava de realizar marcha de 16 léguas e ali chegava em forma, em ordem admirável, como se fosse tranquilamente a uma simples passeata.


Convicto de que os intrépidos soldados do Sul prosseguiam retilineamente nas empresas rudes da guerra, compartilhava da opinião do general-em-chefe que repetidas vezes afirmou a confiança inteira, absoluta, que lhe inspirava o batalhão de São Paulo: “Cada vez me agrada mais esta sua gente…”. Quais as razões para isto? Para os elogios generosos à participação paulista numa verdadeira guerra civil em Canudos?


Euclides é quem responde: “O batalhão era perfeito na disciplina. Cumpria as ordens que recebia, mas rigorosamente, estritamente, com uma precisão verdadeiramente militar, sem delas se arredar nem mesmo para se atirar à aventura mais tentadora e aparentemente da mais fácil realização.” Depois de afirmar que o elogio era “o depoimento simples e sincero de uma testemunha pouco afeiçoada à lisonja banal e inútil”, concluía não ser a primeira vez que os paulistas assim agiam. “O episódio trágico dos Palmares e a epopéia ainda não escrita dos Bandeirantes foram criados pela índole aventureira e lutadora dos sulistas ousados”.


Pena que a tradição seja tantas vezes esquecida e que São Paulo, na rabeira da política desde 1932, custe tanto a ocupar o papel de direito na União que sustenta com seu trabalho e com a dadivosa acolhida dos irmãos mais necessitados, que superlotam suas cidades.

 

José Renato Nalini é Desembargador da Câmara Ambiental do Tribunal de Justiça de São Paulo, autor de “A Rebelião da Toga”, Editora Millennium, 2006. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.

 

 


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Meu pai, Euclides da Cunha

José Renato Nalini


Dois mil e nove marca o centenário da morte de Euclides da Cunha. O autor de “Os Sertões” foi alvo de estudos densos, profundos e completos. A cada vez que seu nome é mencionado, lembro-me do verdadeiro culto a ele devotado por Adelino Brandão, uma saudade perene entre os amigos e a presença forte no mundo da cultura literária.


Quase tudo já se falou sobre Euclides. Para homenageá-lo, penso que seria interessante breve reflexão sobre seu papel de pai. Genitor de uma considerável prole, pouco se dedicam os euclidianistas a abordar sua conduta paterna. Um ponto de pesquisa seria a leitura de suas cartas. Há um epistolário euclidiano que não cessa de crescer. A primeira carta dirigida a seu filho Euclides Júnior, internado num colégio, é de 19.3.1908. Nela, o pai diz ter ficado contente com o propósito do filho ser bom, obediente e estudioso.

 

Depois de se confessar ansioso por saber o resultado dos exames, é direto: “Achei a tua letra pior do que no ano passado. Vê, por aí, o que são dois meses de vadiação. Eu espero, porém, que doravante terás mais juízo, para tua e nossa felicidade. Já deves estar convencido que nenhum lucro há em ser-se mau ou descuidado nos deveres. E como és inteligente, trata de ser bom, aplicado e limpo para seres verdadeiramente feliz.


Confiamos todos no teu coração, certos de que não nos farás sofrer e que cumprirás a tua promessa de um ano mais bem aproveitado. Assim também terás férias melhores e mais alegres”.


Ao receber notícia de que o filho fora bem nos exames, logo responde e confessa “verdadeira felicidade”. E acrescenta: “Agora não deves parar mais. Prossegue com abnegação. Para isto não precisas sacrificar-te. Basta que tenhas constância e método, que estudes nas horas de estudo e prestes toda a atenção nas aulas. Assim, ainda terás muito tempo para brincares e chegarás ao fim do ano com toda matéria sabida. Mas não te desvies nunca deste programa: nem um dia sem estudar! Um pouco por dia quer dizer muitíssimo por ano. A par disto não te esqueças nunca do respeito que deves aos mestres e da lealdade que deves aos teus companheiros. Assim serás um homem e terás sempre ao teu lado como o teu maior amigo teu pai”.


Nem sempre os conselhos calam fundo, contudo. Em 12 de junho de 1908, novamente se dirige ao filho, a quem chama – carinhosamente – de Quidinho: “Desejo-te felicidades e, sobretudo, que continues bem disposto a andar direitinho nos teus atos. Infelizmente ainda não tenho boas informações a teu respeito. Mas confio na tua nobreza de sentir, convencido de que farás tudo quanto puderes para não me dares desgostos. Notei que não estás na lista dos que obtiveram o banco de honra. Não importa! Continua a estudar com vontade e constância que obterás o prêmio merecido. Arma-te de boa vontade para atravessares corretamente este ano; para saíres aprovado em dezembro de modo que possas divertir-te bem durante as férias”.


No mesmo ano, agora em 13 de agosto, lamenta não poder visitar os filhos internados: Euclides Júnior, o “Quidinho”, e Solon, que leva o nome do avô materno. E diz: “Se eu fosse até aí entre outras coisas te diria o seguinte: Quero que respeites mais aos teus mestres – porque eles, aí, me representam; de sorte que não tens de envergonhar-te das repreensões que eles te dirijam. É um engano imaginares que a insubmissão seja própria de um homem verdadeiramente altivo. O homem verdadeiramente altivo é o que evita ver-se na posição de merecer uma censura. É o que deves não esquecer. E, dada a infelicidade de um erro, de que não estás livre, mesmo em virtude da tua idade, deves submeter-te às suas conseqüências. Sem esta resignação superior nunca serás um homem útil. Mas eu sei que és bastante inteligente para veres e avaliares o valor do que estou dizendo-te; e que farás o que em ti couber para satisfazer a minha vontade. Dentro de três meses estarás em férias e se andares direitinho não te faltarão aqui divertimentos que compensem os teus trabalhos. Estuda, pois; esquece ressentimentos sem base; respeita aos teus mestres; estima aos teus companheiros – de modo que sejas verdadeiramente digno do amor de tua mãe e de um abraço do teu pai”.


Um último cartão postal foi recolhido para o epistolário de Euclides da Cunha, coletado por Francisco Venâncio Filho. É de 1908, sem data. Dirigido a Euclides da Cunha Filho quando ele cursava o Colégio Anchieta, em Friburgo. Diz: “Recebi as notas pelas quais vejo que estás ‘tenente’ em português e ‘coronel’ em latim. Ficaria mais contente se se trocassem os títulos. Em todo o caso vejo que não estás perdendo o tempo. Continua. Até ao fim do ano ainda podes fazer muito. Sobretudo deves comportar-te bem. E a nossa velha aritmética? Nem um posto? Nem mesmo o de alferes? Todos bons. Abraço-te. Euclides”.

Logo no ano seguinte, Euclides da Cunha Filho matriculou-se na Escola Naval. Quando aspirante, foi assassinado pelo mesmo autor do homicídio de seu pai. Isso aconteceu em 4 de julho de 1916.

 

José Renato Nalini é Desembargador da Câmara Ambiental do Tribunal de Justiça de São Paulo, autor de “A Rebelião da Toga”, Editora Millennium, 2006. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.


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A vanidade da fé

José Renato Nalini


Se Cristo não ressuscitou, é vã minha fé, proclamou São Paulo. E isso continua a valer. O Cristianismo repousa na certeza de que Jesus ressurgiu dos mortos. Quem não aceita isso não é cristão. Não basta uma “simpatia” pelos princípios cristãos. É óbvio que alguns deles ganham universalidade. A igualdade entre as pessoas. O cristão não tem outra opção, salvo considerar cada pessoa um irmão. Todos são igualmente filhos de Deus. A fraternidade é conseqüência disso. Daí a revolução que foi o advento dessa verdade e a razão política do combate aos primeiros cristãos.  Não é preciso ser crente para reconhecer a dignidade humana.


Pelo mero fato de alguém nascer dentro desta espécie, inegável a titularidade da condição a todos atribuível. Ninguém desmerece a categoria da dignidade humana. Mesmo aqueles que praticam atos ignóbeis, a mostrar a fragilidade da matéria-prima com que todos somos fabricados. O cristão, todavia, tem outras obrigações. Além de se submeter à ordem temporal – pois a Constituição da República enfatiza esse supra-princípio da dignidade da pessoa humana – ele deve se curvar ao mandamento de mais difícil observância. É o “amar ao próximo como a si mesmo”.


Pode parecer piada falar em “amor ao próximo”, numa sociedade egoísta e hedonista, em que a regra é “puxar o tapete do outro”. A egolatria é a característica mais evidente em todos os espaços. A competição, o consumismo, o próprio interesse em primeiro lugar, tudo isso predomina no mundo que ainda se auto-denomina “cristão”, mas que não seria identificado assim por alguém que pudesse aferir a qualidade de sua conduta.


Quem é capaz de amar ao próximo incondicionalmente? Quem é que suporta o mau caráter, o chato, o contaminado, o drogado, o preso, o excluído? Quem consegue distinguir a essência humana naquela carcaça de quem escapa aos nossos padrões? Já houve tempo, dizem os Evangelhos, em que os cristãos eram identificados porque se amavam. “Vede como se amam!”.


Houve quem conseguisse assimilar a regra e vivê-la. Missão difícil, espinhosa, árdua, extenuante. Mas não impossível. Lembro-me, cada vez com freqüência maior, das lições do nosso santinho Dom Gabriel. Há quatro esferas de relacionamento que as pessoas precisam levar a sério. Primeiro, é preciso conhecer-se. Quantos há que não se conhecem? A vida impõe seu ritmo e a criatura, em lugar de se auto-determinar, de guiar-se pelo livre arbítrio, parece plugada a uma força que a impulsiona sem qualquer participação própria. Robotizada, caminha de forma insensata e sequer sabe quem é. Sem se conhecer, ninguém pode ter auto-estima. E quem não tem auto-estima, também não sabe amar.


A segunda esfera, a mais difícil, é a do amor ao próximo. Só depois de se conhecer intimamente é que alguém estará aberto para o amor.  As duas outras esferas são o relacionamento com a natureza e, finalmente, com Deus. Duas grandes dificuldades. A pouca gente ocorre que a insanidade está a comprometer a existência de vida no planeta.


O desmatamento, a poluição sob todas as formas, a produção excessiva de lixo, a contaminação do solo, da água e do ar está a envenenar este ser de vida efêmera que é chamado homem.Quem não se respeita, não consegue conviver e maltrata a natureza, também não chega a mergulhar no mistério divino. Essa a verdadeira crise da humanidade após tantos milênios e no século XXI do nascimento Daquele que ressuscitou. Pois se ele não ressuscitou, todo o cristianismo pode ser abandonado.


Noto certa dificuldade de alguns círculos em acreditar nessa verdade. Há uma arrogância, aliada à ignorância e preguiça em se aprofundar, quando muitos preferem acreditar numa “energia”, numa “força” ou em algo indeterminado que responderia às perguntas irrespondíveis. Isso não preenche a necessidade de verdadeira fé.


A mim não me basta a sensação de que “algo existe”. Continuo a crer que Deus se encarnou, viveu, sofreu, foi morto… mas ressuscitou. Isso é o que me dá esperança de conservar a individualidade e de um dia rever as pessoas amadas numa outra esfera. Por isso é que a ressurreição adquire um significado profundo e deveria servir para uma séria reflexão a respeito das questões cruciais: por que nasci, o que estou fazendo aqui, para onde vou depois da morte? São as perguntas que pouca gente se faz e que grande parte daqueles que ousam fazê-lo, não encontram resposta, porque lhes falta a graça da crença. Boa Páscoa da Ressurreição para todos!


José Renato Nalini é Desembargador da Câmara Ambiental do Tribunal de Justiça de São Paulo, autor de “A Rebelião da Toga”, Editora Millennium, 2006. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.

 

 


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Você pode arcar?

José Renato Nalini

A necessidade de fazer um pouco de exercício me leva a permanecer numa esteira durante trinta minutos. É o período em que assisto na TV a programas que talvez não pudesse acompanhar em outros horários. Com isso, vejo com freqüência a desenvoltura de Oprah Winfrey, uma das comunicadoras mais prestigiadas dos Estados Unidos, em sua aparição diária. Por ser inteligente e estar num nível privilegiado, pode desenvolver um outro tipo de comunicação.

O entretenimento mais direto e singelo é substituído por algo que surte efeito e auxilia uma comunidade difusa de telespectadores. O nome deste artigo é uma experiência destas. Oprah contacta uma administradora econômica doméstica para opinar sobre questões concretas de algumas famílias. Todos temos sonhos, ambições, aspirações. É assim que a vida funciona e nisso encontramos força para prosseguir, a despeito das vicissitudes. Mas é preciso indagar se os nossos sonhos cabem dentro de nossas reais possibilidades.

“Você pode arcar?” é a pergunta que se faz no programa. O primeiro caso era o de um pai que queria propiciar às duas filhas o acesso à Universidade. Nos Estados Unidos isso é muito caro. Chegaria a 160 mil dólares por filha. Na modesta economia de quem ganha 4 mil dólares por mês e gasta 3,8 deles, como arcar com o dispêndio?

O pai queria um empréstimo. Mas a economista provou que ele – com mais de 50 anos – teria de passar mais de 30 anos só para pagar o estudo de uma das filhas. Indagadas a respeito do sacrifício, mãe e filhas desistiram do projeto de empréstimo. Para decepção do pai. Mas foi acertado. E a economista ainda argumentou que nem sempre estudar nas Universidades mais caras garante êxito na vida. Deu o seu próprio exemplo de que o importante é ser feliz e fazer o que gosta.

Outro exemplo era o de uma jovem que pretendia oferecer uma festa de casamento para 200 pessoas e seu noivo preferia um churrasco no quintal. Para o primeiro plano, seria necessário o dispêndio de 50 mil dólares. Para o segundo, 5 mil dólares.

A partir da economia dos noivos, a economista provou que era inviável a festa. A moça já devia 16 mil dólares no cartão. Mais 28 mil dólares de crédito educativo. Lá nos Estados Unidos, não há perdão para quem se utiliza do similar de ProUni como aqui. Inviável uma festa para quem está a dever. Como é totalmente desarrazoado continuar a gastar quando se está sem emprego. Falta juízo a muito adulto que não se precavê, não está preparado para as intempéries das quais ninguém está liberado. Um programa assim faz bastante gente pensar se não está na mesma situação.

Uma terceira situação era a do casal que depois de 12 anos de casamento, percebeu que já não existia amor. Com três filhos, uma delas portadora da síndrome de Down, e muitos quilos depois, a mulher descobriu que não tinha tempo nem para si mesma, menos ainda para o marido. Administrar os filhos tomava todo o seu tempo e sua mente.

Separaram-se de fato. Ele passou a dormir no escritório e ela permaneceu no quarto da família. E para separar, não havia dinheiro. Ele ficou desempregado. A entrada mensal que era equivalente a 6 mil dólares, passou a 1,5 mil dólares, porque ela vendia cosméticos. Levaram o seu problema à Oprah que o submeteu à economista. Aparentemente insolúvel o dilema de ambos. Permaneciam juntos porque inviável a cada qual manter-se isoladamente com a evidente insuficiência de recursos financeiros. O que fazer?

A solução provisória a que chegaram foi a opção pela venda da casa, liquidação da hipoteca e, com o produto, aluguel de dois apartamentos menores. Não gostei dessa alternativa e penso que não dará certo. Mas o importante foi trazer a questão a debate. Vale a pena permanecer juntos, a habitar a mesma casa, se já não se vive um casamento?
O que é pior para as crianças: os pais fisicamente juntos, mas não se suportando, ou separados e tentando reconstruir sua vida? Não há solução fácil, nem ideal. Mas são problemas concretos que devem ser enfrentados a partir dessa constatação de que a vida impõe desafios. Uma sociedade inspirada no consumismo não sabe viver sem dinheiro. Não existem planos alternativos para quem necessita de recursos para fazer face às suas necessidades. Muita gente precisa se auto-indagar se haverá condições de arcar com os projetos ou se está arriscada a mergulhar na inadimplência, tantas vezes sintoma de irresponsabilidade ou, mesmo, de falta de caráter.

José Renato Nalini é Desembargador da Câmara Ambiental do Tribunal de Justiça de São Paulo, autor de “A Rebelião da Toga”, Editora Millennium, 2006. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.

 

 

 

 


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Quantos aniversários ainda fará?


José Renato Nalini

A mídia global noticiou com certo alarde a festa de aniversário de Robert Mugabe, presidente do Zimbábue. Ao completar 85 anos, ele ordenou que a comemoração fosse inesquecível. Não foi necessária muita habilidade para persuadir as moscas que circulam o poder em todas as esferas neste triste planeta. Os áulicos providenciaram toda a pompa e circunstância para essa festa inesquecível.

Assim é que membros do partido governista ZANU-PF, pediram doações a empresas e partidários, com a preocupação de bajular o homem que, com mão-de-ferro, comanda o País há mais de vinte anos. É o que noticiaram os jornais The Times, de Londres, e El País, de Madri. Isso costuma acontecer em todo o mundo, com maior ou menor desenvoltura. Basta que alguém possua algum resquício de poder e surgem as táticas das homenagens. Antes mesmo de se produzir algo em favor da comunidade, os interessados em agradar “quem está por cima” começam a reverenciar o poderoso.

A vaidade retroalimenta essa praxe. A falsa modéstia não é suficiente a reprimir o cordão do servilismo. Quem é que não gosta de agrado? E de tanto agradar, até as homenagens que poderiam servir de estímulo às boas práticas passam a representar banalidades melancólicas. Se todos são homenageados, como distinguir aquilo que de fato é merecedor de encômios e aquilo que resulta de interesse mesquinho de quem promove a festa?

Mas o chocante, em relação a Mugabe, é a lista de pedidos aos que  patrocinaram a comemoração de seu aniversário. Todos sabem que o Zimbábue é um País paupérrimo. Quase 90% de sua população passa fome. Morre-se de fome e não de maneira figurada. Os habitantes não têm dinheiro para comprar um pedaço de pão. A ajuda humanitária é proibida de chegar ao solo zimbabuano. Parece que os detentores do poder querem mesmo extinguir a população local para depois lotear a terra para quem puder ali construir spas ou resorts destinados aos ricos do planeta.

Entre os itens pedidos aos “amigos de Mugabe”, figuraram: 1 milgarrafas de champanhe Moët & Chandon, 8 mil lagostas, 4 mil porções de caviar, 100 quilos de camarões pistola, 8 mil caixas de bombons Ferrero Rocher, 16 mil ovos, 3 mil patos. E por aí vai. Dá engulho repetir o que se solicitou aos que tiram vantagem dessa ditadura cruel.

Não era necessário contribuir em espécie. Para quem considerasse mais fácil, a oferta poderia ser em dólar. Só que a partir de 45 mil dólares. A conta bancária já figura no pedido de contribuição. É uma conta do Movimento 21 de Fevereiro, organização de jovens controlada pelo ZANU-PF, cujo nome é exatamente a data de nascimento de Mugabe.

A imprensa do mundo civilizado chamou de surrealista essa postura de um partido no governo, diante da realidade do País: 94% da população está desempregada e a inflação atinge o índice recorde de 231.000.000%. É isso mesmo: 231.000.000%, não está sobrando zero, não!

A escassez de alimentos reduz a população com ritmo tão alucinante quanto a volúpia do ditador. De acordo com dados da ONU, 7 milhões de zimbabuanos necessitam de ajuda humanitária urgente para sobreviver à fome. Além da crise econômica, o Zimbábue também luta contra uma epidemia de cólera que já matou mais de 3 mil pessoas e infectou outras 60 mil.

Não é só. Morre-se de aids, de tuberculose, que é uma doença que ainda mata, pois a baixa imunidade dos soropositivos é um chamamento a essa fraqueza dos pulmões. Toda a seqüela de males que acompanha a miséria está presente no Zimbábue, cujo presidente quis festejar de maneira imperial os seus 85 aninhos.

A imprensa não publicou fotos da festa. Nem as revistas de frivolidades tiveram coragem de estampar o festival de desperdício, injúria grave para os miseráveis que sequer tiveram direito às migalhas do banquete presidencial.

Mas noticiou-se que um acidente entre um caminhão e o carro em que viajava Morgan Tsvangirai, o Primeiro-Ministro do Zimbábue e adversário do Presidente, mandou a autoridade para o hospital e sua mulher para o cemitério. Susan era a esposa de Morgan há 31 anos e mãe de seus seis filhos.

Há dúvidas sobre a causa do acidente, embora Wayne Bvudzijena, porta-voz da polícia, tenha afirmado à TV estatal que o carro que transportava os Tsvangirai pertencia a seu partido, o Movimento pela Mudança Democrática e era dirigido por um motorista particular. Porque há sempre dúvidas sobre o destino daqueles que ousam contrariar o todo-poderoso Robert Mugabe. Quantos anos mais ele comemorará? Haverá o que festejar nesse finalzinho de existência? Com que créditos se apresentará ao magistrado do Juízo Final?

 

José Renato Nalini é Desembargador da Câmara Ambiental do Tribunal de Justiça de São Paulo, autor de “A Rebelião da Toga”, Editora Millennium, 2006. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.


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A fábrica de viúvas


 

Assim é que os médicos americanos chamam a aorta, aquela artéria que tem o péssimo hábito de entupir e de matar. Os homens são as principais vítimas. As razões são conhecidas: fumo, sedentarismo, angústia, preocupação, estresse. Dá para evitar as pré-condições para essa fatalidade cardíaca? Ao menos as duas primeiras são evitáveis.
Fumar é vício que mata. Todos sabem disso. Por que falta às pessoas força de vontade para abandoná-lo? É incrível como se propagou a notícia de que fumar acaba com os alvéolos pulmonares, causa hipertensão, envenena o sangue, rouba alguns anos de vida ao fumante. Mesmo assim, ele continua a fumar. Já tentei com filhos fumantes levá-los assistir a agonia de fumantes. Vi a morte de alguns amigos, atormentados pela falta de ar. Não há tubo de oxigênio que supra o suplício da dificuldade respiratória. A morte é dolorida para quem morre. Dolorosa para quem assiste. A impotência de ambos os lados deprime.

Constata-se a fragilidade dessa criatura que não consegue dizer “não” a alguma coisa que a envenena. Muito triste. Tenho uma amiga que comprou capa onde guarda seu maço de cigarro, para não se defrontar com aquelas cenas macabras que o Ministério da Saúde obrigou fossem estampadas. “Fumar dá câncer”. “Fumar causa impotência”. “Fuma gera hipertensão”. De que adianta tudo isso, se falta aquela coisinha tão trivial chamada “vergonha na cara?”.

Outra coisa que pode ajudar a prolongar a vida é fazer exercício físico. Verdade que não é suficiente exercitar o corpo sem controlar o que se coloca dentro dele. O brasileiro come relativamente bem, considerados os hábitos nutricionais do norte-americano. A juventude obesa se entope de bacon, sanduíches com pasta de amendoim e toma refrigerante – aquele que é típico deles – como se fosse água.

Caminhar todos os dias faz com que as artérias permaneçam flexíveis. Equilibra a pressão. Facilita a respiração. Não é fácil tirar aquela gordura do abdômen, causa principal de problemas cardíacos. Depois que se adquire, ela custa a ir embora. Para alguns, nunca mais. É necessária a cirurgia para redução de estômago ou até a lipoaspiração. Mas o exercício se faz para preservar a qualidade de vida. Não é a fórmula para esculpir o físico, até se aproxime do ideal do “super-homem”. Quem caminha prolonga a sua vida e esse o exercício mais fácil, mais barato, mais disponibilizado e acessível a qualquer pessoa.

Duas das causas da morte cardíaca têm o seu combate ao alcance de todos. É claro que as outras se condicionam a uma série de circunstâncias muito mais complexas.Quem é que consegue se livrar da angústia? A condição humana é a de uma criatura miserável. Não quer pensar nisso, mas sabe que vai morrer. Não sabe quando, o que é bom. O que seria de cada um de nós se soubesse o momento exato em que deixará tudo para trás? Nós que somos tão pretensiosos, arrogantes e … tolos!

Pensamos que vamos viver eternamente. Por isso adiamos o que é essencial. Fazer as pazes com quem brigamos. Falar aquela palavra de estímulo, de carinho e de ternura para quem depende dela. Sempre achamos que haverá tempo e, quando vemos, a vida já passou. Ela é cada vez mais breve.

Quanto tempo perdido no egoísmo. Na consecução de bens da vida materiais. Aqueles que deixaremos tudo aqui. O povo é sábio quando diz que “caixão não tem gaveta”. Ninguém leva nada do que acumulou. Deixa para a família brigar. Ou dilapidar. Ou manter a servidão de juntar mais e mais. A humanidade se esquece do principal. O ser humano não se satisfaz com a riqueza. Mesmo os ricos, querem cada vez mais. A cada passo adiante, surge um novo objetivo. A insatisfação é a regra.

As lições mais singelas são esquecidas. Quem é que se detém a pensar naquela parábola do rico? Ele morre e vê que nenhum dos valores aos quais se devotou em vida tem relevância na eternidade. Quer voltar para avisar sua família de que é tempo de conversão. E é advertido: – “Se eles não acreditam nos profetas, por que acreditariam na visão de um morto?”. Se a humanidade conseguisse cultivar um pouquinho só, não muito, o ideal da ascese, ela também se livraria da morte precoce. E do tormento que é partir para quem edificou tudo aqui e de forma a não poder levar quando se defrontar com a ceifadeira. Desprezar um pouco só a matéria, valorizar os sentimentos, amar desinteressadamente. Pensar mais nos outros, menos em si mesmo. O resultado seria a redução da angústia, das preocupações e do estresse. Mas a matéria-prima de que é feito o homem é bastante ordinária, para lembrar o uso desse verbete no interior e pelas pessoas do povo.  Ordinariamente, o ser humano parece incapaz de se elevar e de refletir sobre a transcendência. Por isso é que, além de não estar preparado para a morte, ele acelera o seu encontro com ela.

 

José Renato Nalini é Desembargador da Câmara Ambiental do Tribunal de Justiça de São Paulo, autor de “A Rebelião da Toga”, Editora Millennium, 2006. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.