Blog do Renato Nalini

Ex-Secretário de Estado da Educação e Ex-Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Atual Presidente e Imortal da Academia Paulista de Letras. Membro da Academia Brasileira de Educação. É o Reitor da UniRegistral. Palestrante e conferencista. Professor Universitário. Autor de dezenas de Livros: “Ética da Magistratura”, “A Rebelião da Toga”, “Ética Ambiental”, entre outros títulos.


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A INVISIBILIDADE CIDADÃ

               Não pode existir “invisibilidade cidadã”. O status da cidadania é incompatível com a invisibilidade. Todavia, a Covid19 exibiu a situação de invisibilidade de milhões de brasileiros, aqueles desconsiderados pelas estatísticas oficiais, mas que são seres humanos que sofrem, choram e anseiam por uma vida digna.

               O Brasil tão incapaz de adoção de políticas estatais compatíveis com a Quarta Revolução Industrial é o mesmo que desconhece o potencial de um dos serviços públicos mais exitosos e confiáveis de que dispõe. O sistema falível de controle das identidades e de cadastros públicos dispõe de uma rede de mais de quinze bases de dados, todas incompletas. Enquanto isso, o Registro Civil das Pessoas Naturais, anônima e silenciosamente, continua a dispor de um acervo de extrema valia para corrigir tal situação e para alavancar projetos consistentes de nova formatação da sociedade tupiniquim.

               Três especialistas no tema apontaram o resultado dessa deficiência, por eles considerado como “três verdades inaceitáveis: 1) Um número significativo de pessoas não consta nos cadastros públicos; 2) Um número significativo de pessoas nem sequer tem documentação adequada; 3)Como resultado, boa parte dos brasileiros não tem nenhuma relação formal com o Estado” (Ronaldo Lemos, Eduardo Mufarej e Cláudio Machado, “Apagão de Identidades”, FSP, 5.4.2020)

               Talvez aos três experientes profissionais tenha escapado a percepção de algo que, por ser tão antigo e tão natural, passa de forma despercebida para a sociedade. Em cada distrito, em cada vilarejo ou povoado desta imensa Nação, existe um Registro Civil das Pessoas Naturais, a delegação extrajudicial mais próxima à população e a mais democrática do sistema.

               O constituinte de 1988 foi muito inspirado quando escolheu a delegação para a outorga dos antigos cartórios. Hoje, eles são exercidos por profissionais competentes, pois aprovados em severo concurso público de provas e títulos realizado pelo Poder Judiciário. A cujo jugo, nem sempre suave, estão permanentemente submetidos.

               A tática de significativa conveniência para o Estado brasileiro é que não há um centavo de dotação pública para que o serviço funcione. O governo deixa de investir na delegação e leva percentual considerável dos emolumentos, que são a remuneração do titular da serventia.

               Prática essa que, levada a outros setores essenciais à finalidade do Estado, teriam transformado para melhor a face de um Brasil de tamanhos contrastes.

               Não adianta ignorar a obsolescência do sistema cadastral brasileiro e deixar de observar o êxito com que o Registro Civil executa sua missão. A antiquada metodologia de carteiras de identidade de papel não é própria ao mundo digital. O e-título já mostrou sua eficiência. A falta de coordenação dos inúmeros bancos de dados pode ser substituída pela capilaridade das delegações extrajudiciais do registro das pessoas naturais.

               Existe um IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, encarregado de coletar todos os dados dos nacionais para nutrir estudos de planejamento e execução de políticas estatais. Ora, o dispendioso recenseamento decenal pode ser – e, na verdade o é – diuturnamente realizado pelos esforçados registradores civis que estão em 13 mil localidades do Brasil.

               Saber quantos são os brasileiros, quando e onde nascem, sua cor, tudo é obtenível no acervo do RCPN. Se a alternativa é a identidade única, a concentração de dados num só documento, isso também se mostra viável para uma estrutura que funciona a contento, muito embora seus préstimos não sejam devidamente reconhecidos pelo Estado. Aliás, numa perspectiva que evidencia a cegueira estatal, impõe-se ao registrador civil o ônus de oferecer gratuitamente aquilo que tem inevitável custo. Nada contra a gratuidade para os comprovadamente carentes. Mas esse ônus não pode recair sobre quem foi habilitado por seleção de mérito para exercer uma atividade estatal pela qual responderá em caráter privado. É frontalmente contrário ao princípio da liberdade de iniciativa privada impor gratuidade a préstimo considerado essencial por parte do governo. Este é que deve responder por esse dispêndio. Afinal, o capitalismo cansou de ensinar que não existe almoço grátis.

               A identidade digital já funciona em grande parte do Brasil. O Registro Civil das Pessoas Naturais funciona junto às maternidades, a partir do esvaziamento da profissão de parteira. As crianças não escolhem dia e horário para nascer: vêm à luz aos sábados, aos domingos, à noite ou de madrugada. Nenhuma criança brasileira, nos centros urbanos mais adiantados, sai da maternidade sem a certidão do seu assento de nascimento. E sem o seu número de CPF. Por que isso não pode ser ampliado para a vacinação, carteira de saúde, Registro Geral e tudo o mais que deva constar do Documento Único?

               Nada impede que essa identidade abrangente seja utilizada de forma digital para obtenção dos serviços públicos e redução da burocracia que sufoca o brasileiro, assim como a mais elevada carga tributária do globo.

               A estrutura do IBGE precisa ser deslocada para o RCPN, mediante convênio, o que já é possível à luz da Lei 13.484/2017 e do Provimento 66 do CNJ e os dados essenciais à formulação de políticas estatais estarão disponíveis para o planejamento do governo.

               Isso pode ser também estimulado pelo Poder Judiciário, que é detentor da condição de produzir significativo impacto na implementação das políticas públicas. Os tribunais influenciam a definição de alternativas pelo poder político. O Judiciário é o fiscalizador, o controlador, mas também o orientador das delegações extrajudiciais. Nada impede, ao contrário, tudo recomenda, que ele assuma papel assertivo para que os demais Poderes, tão inebriados com eleições e reeleições, coligações e utilização de Fundos Partidário e Eleitoral, produzam normatividade que responda aos crescentes desafios do mundo digitalizado.

               O Brasil tem criticado a interferência do Judiciário na política. Mas não pode se omitir quando constata a ineficiência de sistemas imprescindíveis ao aperfeiçoamento da frágil Democracia pátria. Investir no aprimoramento cadastral, na prática efetiva de oferta de serviços públicos hoje tão deficientes, como o controle de vacinações, de matrículas, de vagas nos hospitais, de obtenção de benefícios previdenciários e assistenciais, é algo que reduzirá, paulatinamente, a invisibilidade dos brasileiros que hoje, excluídos das benesses, mas incluídos nas desgraças, merecem adequado tratamento. Por parte dos três Poderes da República, mas também por parte da Universidade, da Academia, da intelectualidade e de todos os brasileiros que possam vir a ser designados sob a abrangente designação de “homens e mulheres de boa vontade”.

               As novas gerações agradecem pelo eventual empenho que venha a ser demonstrada no sentido de reduzir os gaps escandalosos que uma das maiores economias mundiais apresenta, em cotejo com os níveis desejáveis de convívio justo e solidário.

_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020.    

Extraterrestre, Casca, Oca, Invisível, Homem, Espião


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DESLIZAMENTOS EQUÍVOCOS ENTRE DIREITO E JUSTIÇA

            Existe equivalência entre direito e justiça? Há quem sustente que sim. Perfilho-me ao lado dos que entendem que não.

            Também não é pequeno o número dos que fazem com que direito equivalha à lei. Mas de que lei se está a falar? Da expressão necessária que se extrai da natureza das coisas? Lei como produto do Processo Legislativo?

Lei como conveniência, como polidez, a lei do mais forte ou a lei equitativa da democracia?

            A lei pertence ao direito ou à Justiça? O direito é uma força autorizada, uma força que se autojustifica ou que tem sua aplicação justificada, ainda que essa justificação possa vir a ser declarada injusta ou injustificável.

            A ideia de direito pressupõe a possibilidade de sua aplicação mediante força. Kant o enfatiza, em sua Introdução à doutrina do direito. Podem existir leis não aplicadas – o Brasil é o país em que há leis que “pegam” e leis que “não pegam” – mas não há lei sem aplicabilidade. E não existe aplicabilidade da lei sem a pressuposição de que possa vir a se utilizar da força para que ela seja aplicada.

            Entenda-se por “força”, uma cornucópia de expressões: força direta ou indireta, física ou simbólica, exterior ou interior, brutal ou sutilmente discursiva – ou hermenêutica – coercitiva ou reguladora em tonalidades que Jacques Derrida bem visualizou em “Força de lei”.

            Há possibilidade de se distinguir essa “força de lei” da violência sempre considerada injusta?

            A casuística é multifária e complexa. Remete à definição de Estado como o monopólio da força. Já se vislumbra a prática impossibilidade de se identificar direito com justiça.

            Pascal, nos seus “Pensamentos”, dizia que “a justiça sem a força é impotente: a justiça não é a justiça, ela não é feita se não tiver a força de ser aplicada; uma justiça impotente não é uma justiça, no sentido do direito; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem força é contradita, porque sempre há homens maus; a força sem a justiça é acusada. É preciso, pois, colocar juntas a justiça e a força; e, para fazê-lo, que aquilo que é justo seja forte, ou que aquilo que é forte seja justo”.

            A conclusão é a de que, não podendo fazer com que aquilo que é justo fosse forte, fizeram com que aquilo que é forte fosse justo. Mera retórica?

            A ciência jurídica, tal como estudada nas Faculdades de Direito do Brasil, ainda enfatiza o “fetiche da lei”. Não é postura desarrazoada, pois Montaigne já dissera “ora, as leis se mantêm em crédito, não porque elas são justas, mas porque são leis. É o fundamento mítico de sua autoridade, elas não têm outro”.

            Inafastável o raciocínio de Montaigne, ao distinguir as leis, ou seja, o direito, da justiça. a justiça do direito, a justiça como direito não é a justiça. as leis não são justas como leis. Não se obedece a elas porque são justas, mas porque têm autoridade. Nas leis, a humanidade acredita. Ainda que sejam írritas à justiça.

            Ninguém pode negar que existem leis iníquas. Todavia, o relativismo convencionalista ou utilitário faz com que elas sejam observadas, mesmo assim. Às vezes, por influência da moral cínica de La Fontaine, na fábula “O lobo e o cordeiro”, na qual se encontra a lição: “A razão do mais forte é sempre a melhor”.

            Missão difícil e angustiante a dos profissionais do direito, sobretudo aqueles que têm de aplicar a lei às situações concretas postas pelo sistema à sua apreciação. Porque, diz Derrida, “a justiça é a experiência do impossível. Uma vontade, um desejo, uma exigência de justiça cuja estrutura não fosse uma experiência da aporia, não teria nenhuma chance de ser o que ela é, a saber, apenas um “apelo” à justiça. cada vez que as coisas acontecem ou acontecem de modo adequado, cada vez que se aplica tranquilamente uma boa regra a um caso particular, a um exemplo corretamente subsumido, segundo um juízo determinante, o direito é respeitado, mas não podemos ter certeza de que a justiça o foi”.

            Inexiste coincidência obrigatória e automática entre direito e justiça. o direito não é a justiça. “O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável; e as experiências aporéticas são experiências tão improváveis quanto necessárias da justiça, isto é, momentos em que a decisão entre o justo e o injusto nunca é garantido por uma regra”.

            Vã ilusão acreditar que a busca do equipamento estatal denominado “Justiça” garanta a decisão justa. Por isso é que muitos dos magistrados já assumiram que não se preordenam a fazer justiça, mas que sua tarefa é conferir segurança ao direito. Ainda que, às vezes, ele seja injusto.

            São os deslizamentos equívocos entre direito e justiça, algo que escapa à maioria dos estudiosos da ciência jurídica suficientemente tentacular para impregnar toda a vida brasileira.

_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020.


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EGOÍSMO CRUEL E BURRO

            O mergulho contemporâneo no obscurantismo é fenômeno inexplicável. Parece admitir múltiplas análises, de acordo com a ideologia e o ponto de vista de quem o examina. Talvez se pudesse explicá-lo à luz de duas considerações. A primeira, é a fragilidade da matéria humana, vulnerável a incríveis retrocessos e capaz de fazer os homens caminharem às tontas. Em círculos ou em marcha-a-ré.

            A segunda é o fardo da ignorância. Multi-agravado no caso do Brasil, que tem negligenciado a educação de qualidade. Enquanto países que enfrentaram guerras e outras catástrofes investiram em ciências, matemática e física, nós ficamos a repetir lições coimbrãs, defasadas, anacrônicas e até necrosadas.

            Daí chegarmos a esse melancólico e ridículo estágio em que se duvida de que o planeta Terra tenha a sua forma esférica, mas seja uma espécie de pizza. Não há qualquer forma de aquecimento global, o ser humano não interfere com a mudança climática, não há incêndio na Amazônia, nem no Pantanal e somos o país que mais protege a natureza em todo o globo.

            Também não existe pandemia. Tudo não passa de alarmismo conspiratório de quem pretende que o Brasil pare de trabalhar e perca o seu espaço de fornecedor de alimentação para o mundo inteiro. Daí para não admitir a vacina é um passo. Chega a ser risível afirmar-se que a imunização serviria para emascular os machos e para fazer crescer barba nas fêmeas.

            Cada um pode acreditar naquilo que quiser. Desde que não interfira na vida alheia. E a vacina é a única alternativa à contaminação e ao evento morte, que se aproxima dos duzentos mil humanos e vai superar essa dolorosa cifra, porque a mesma ignorância que faz duvidar da vacina, deixa a multidão se contagiar em bando.

            A vacina deve ser compulsória. É insuficiente vincular algumas atividades à comprovação de tê-la tomado. Pois não é uma questão de foro íntimo. É um tema de saúde pública, uma política humanitária, muito acima de ser pública ou até mesmo estatal.

            Ninguém pode alegar a liberdade individual para não se vacinar. Quem optar por isso não pode ter contato com ninguém mais. Pois é um eventual contaminador e deve ser coibido de circular e de semear a peste por uma comunidade difusa de semelhantes.

            Não existe o direito a não se imunizar. O STF nem precisaria ter se posicionado a respeito, porque é de senso comum reconhecer a obrigação que o integrante da sociedade tem de sacrificar seus interesses egoísticos em prol da maioria.

            Paradoxal que a humanidade tenha atingido este ponto de inflexão. A ciência cada vez mais precisa, as tecnologias disponíveis, a longevidade batendo seguidos recordes e a mais abjeta ignorância a presidir parcela considerável da população. Os semeadores do ceticismo não se contentam com a sua temeridade, mas procuram seduzir pessoas que não estão convencidas de que a vida é uma constante conspiração do mal contra o bem.

            Mal é o que esses pregadores da mentira causam aos incautos, aos crédulos e aos mais ignorantes ainda do que eles. Quanto já não se afirmou que a natureza foi módica ao distribuir talentos, mas generosa quanto a povoar a Terra de gente tosca, ignorante, medíocre e idiota? E, além do mais, ignorantes maldosos. A crueldade ao optar por uma postura que não é meramente pessoal: todo contaminável é um provável transmissor da peste a outro ainda não imunizado.

            Nesta terra da judicialização, em que tudo começa e acaba num Tribunal, é óbvio que a vacina também será judicializada. Que nosso sistema justiça esteja preparado para tornar a vacina impositiva, não um tema discricionário. Pensa-se é na saúde de todos. Enquanto houver pessoas contamináveis, a vida de todos está em perigo.

            A ignorância é tamanha e tão profunda, que uma nação que vive há décadas com a imensidão de produtos “made in China”, queira agora refugar uma vacina que é um dos raros frutos de uma cooperação científica entre o Instituto Butantã, nicho de excelência, e renomados cientistas chineses.

            Recomendar-se-ia aos ignorantes, sem sucesso é claro, porque eles têm fobia por pesquisa, verificar quantos trabalhos científicos foram elaborados por expertos da China e como está o Brasil em cotejo com eles. Aprender com a sabedoria chinesa, com a tradição chinesa, com a seriedade com que os chineses trabalham, não faria mal a este país tão necessitado de mais sensatez.

            Queira Deus tenhamos vacina paulista-chinesa o quanto antes. E que tenham outras vacinas, venham de onde vierem. A alternativa é a roleta-russa de se contaminar e de morrer. Será que os negacionistas têm plena noção disso?

_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020.

Bienal, Eu, Egoísmo, Pessoa, Egocentrismo, Amor Próprio