Vivemos sob a égide do Estado de Direito de índole democrática. É isso o que a Constituição de 1988 nos propõe. O Estado de Direito se confunde, na sua mais singela expressão, com o “Estado sob a lei”. O Estado legal. Lei como expressão da vontade comum, para propiciar o convívio civilizado.
Mas também estamos imbuídos da concepção de um Estado social; uma organização que favoreça o desenvolvimento da sociedade como um todo.
Sob essa ótica, a responsabilidade do Estado é prever, decidir, regular e agir em simultaneidade com os processos econômico-sociais. Diante de tais desafios, o Estado Social não pode se orientar pelo tempo passado e, sim, pelos tempos presente e futuro. É preciso assumir sua indefinição e indeterminação, pois o porvir nunca é certo ou previsível. Principalmente numa Nação complexa e heterogênea, periférica e distanciada dos mais elevados graus civilizatórios como é o Brasil.
A manifestação das decisões estatais em normas positivadas deverá contaminar o campo do direito com o provisório. O segredo é identificar o tempo estatal e seus temas com os da política. A abertura do direito ao tempo futuro, na visão de Jürgen Habermas, o levou a admitir “leis experimentais, de caráter temporário e leis de regulação de prognóstico inseguro”.
O Direito, nesta situação, precisa de um legislador implícito e o Poder Judiciário passa a ser o controlador dos demais Poderes. Essa a agenda que está na raiz do processo, indubitavelmente não linear, de transformação universal do Poder Judiciário em agência de controle da vontade do soberano, permitindo-lhe invocar o justo contra a lei.
O constitucionalismo moderno, ao pontuar os “princípios fundamentais”, inclusive os direitos sociais, não somente deslocou a hegemonia do positivismo kelseniano, como concedeu novo espaço para as correntes do humanismo jurídico, devolvendo atualidade à antinomia clássica entre Direito e Justiça.
É o que explica a inclusão do Poder Judiciário na política e a acusação que o sistema Justiça recebe de ser ativista. Foi a opção pelo Welfare State, o modelo de Estado Provedor, que facultou ao juiz o acesso à administração do futuro e o constitucionalismo moderno, a partir da experiência negativa de legitimação do nazi-fascismo pela vontade da maioria, confiou ao Judiciário a guarda da vontade geral, encerrada nos princípios fundamentais positivados na ordem jurídica.
O fenômeno não se restringe ao Brasil. A judicialização das relações sociais é universal. Deu um passo entre nós com os Juizados Especiais, cuja institucionalização abandonou a sua vocação. Os princípios que os inspiraram foram atenuados. As pautas se tornaram longas. Os Juizados foram acometidos da mesma sintomatologia da Justiça convencional. Agora os Centros Judiciais de Solução de Conflitos e Cidadania talvez possam retomar o melhor rumo. Uma concretização do justo sem mediação política, formalismos e juridiquês, ematendimento às expectativas por direito e cidadania de setores socialmente emergentes.
Não se deve enxergar no excessivo demandismo só os aspectos nefastos. A Justiça exprime menos um contrapoder do que um outro poder. Sua força não está em suscitar oposição política, mas em impor um reforço na estratégia de deliberação. Por meio desse reforço, a representação política é renovada. As novas mediações lhe concedem nova consistência. Ao lado do mandato político dos representantes, surge o espaço de uma democracia mais participativa, em que o enunciado das normas reguladoras da convivência se define em comumacordo.
Por todo o planeta, o que se constata é que a vocação expansiva do princípio democrático tem implicado em crescente institucionalização do Direito na vida social. É o que se registra em certas dimensões da esfera privada, antes indevassáveis, e na blindagem do mérito do ato administrativo, sempre indevassável pelo Estado-juiz.
No Estado Social, o direito se investe de relevância particular e singularíssima, na medida em que está dotado do caráter técnico que o capacita a assumir a função de um meio de comunicação simbolicamente generalizado.
A transformação da vida social implica em revisão de conceitos, reformulação de valores e urgente redefinição do papel da lei para que ela possa servir como instrumento de implementação da Democracia Participativa prometida pelo constituinte há quase trinta anos e ainda bem distante da realidade brasileira.
Fonte: Correio Popular – Campinas | Data: 30/12/2016
JOSÉ RENATO NALINI é secretário da Educação do Estado de São Paulo. E-mail: imprensanalini@gmail.com