Blog do Renato Nalini

Ex-Secretário de Estado da Educação e Ex-Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Atual Presidente e Imortal da Academia Paulista de Letras. Membro da Academia Brasileira de Educação. É o Reitor da UniRegistral. Palestrante e conferencista. Professor Universitário. Autor de dezenas de Livros: “Ética da Magistratura”, “A Rebelião da Toga”, “Ética Ambiental”, entre outros títulos.


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Brasil: puxão de orelhas

O Brasil se submeteu a uma sabatina perante a comunidade internacional durante sua segunda participação na Revisão Periódica Universal da ONU. O encontro foi em Genebra e o objetivo avaliar a situação dos direitos humanos. Ciente de que não basta enunciar 78 direitos fundamentais como incisos do artigo 5º da Constituição Cidadã, além de escancarar uma porta para incluir no rol todos aqueles que resultarem de tratados, acordos, convenções, o Brasil sabe viver um discurso diferente da prática. 

O texto constitucional é o mais avançado. Tanto que admite a inclusão, como direito fundamental, de qualquer bem da vida não explicitado, mas decorrente da interpretação ou implicitamente extraível do contexto fundante. Por saber que não fez “a lição de casa”, aceitou, passivamente 159 correções de rumo. 

Ou seja: se comprometeu a implementar 159 das 170 recomendações. Sabe que algumas delas são inviáveis: a presença de um defensor público em cada unidade prisional. Haverá também médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais? E nos estabelecimentos dedicados às crianças e aos idosos, eles estão lá? O direito fundamental à educação, à moradia, ao saneamento básico, ao transporte, ao trabalho, ao lazer, já foi estendido a todos? Há recomendações bizarras nesse grupo de países que fiscaliza o cumprimento dos direitos fundamentais no quintal dos outros: o de extinguir a Polícia Militar. 

É um absurdo, no momento em que a PM recupera o Rio, pacifica espaços que a criminalidade adotara e mantivera durante décadas, por descaso do Estado. Outras recomendações esbarram naquilo que resta de soberania ao Estado contemporâneo. Por exemplo: a proteção da família “natural”, decorrente do casamento e formada por um marido e por uma mulher. 

Deixar de reconhecer outras formatações, no momento em que o STF legitima uniões homoafetivas, já invadiria o espaço reservado à autonomia de cada país. O melhor mesmo seria o Brasil cumprir o que já prometeu e não fez: criar indicadores próprios de direitos humanos. Uma espécie de autocontrole, de autogestão de seus interesses, para não levar mais puxões de orelha da comunidade internacional. |

JOSÉ RENATO NALINI é Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, biênio 2012/2013. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.


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Eu ouço você!

Estou lendo “O que o dinheiro não compra – Os limites morais do mercado”, de Michael J. Sandel, o famoso autor de “Justiça” e isso me fez pensar em muita coisa. Hoje pagamos pela psicanálise, deixando de usar o confessionário gratuito. É verdade que o psicologismo contemporâneo critica a confissão, sob argumento de que ela libera o pecador para reiterar sua via pecaminosa. 

“Lavou, está novo!” é comentário do agnóstico ou do ateu. Nada obstante, o consumismo contribuiu para esvaziar o confessionário. Numa sociedade de consumo, o que não se paga não tem valor. Na contramão dessa tendência, algumas paróquias paulistanas instituíram serviço gratuito de oitiva de quem quer desabafar, sem necessariamente se confessar. Voluntários ouvem aqueles que querem falar e não têm quem os ouça. Os voluntários não são psicólogos, não dão conselhos. Oferecem apenas tempo, atenção e paciência. 

O salvatoriano Padre Deolino Pedro Baldissera instituiu a escuta na Paróquia Nossa Senhora Aparecida, em Moema, em 2003. Hoje conta com 16 voluntários e o serviço foi ampliado para outras paróquias: 15 na Capital, uma em Santo André e outra em Santos. O Grupo de Apoio do Serviço de Escuta é a entidade que treina os interessados em ouvir a população. Entre as regras está o respeito à escolha religiosa. O serviço pode ser utilizado por crentes de todas as confissões e por ateus.

O anonimato é a regra e o serviço recebe desde idosos solitários, como jovens com problemas sentimentais. A prova de que o serviço é útil é a contínua procura de pessoas desesperadas porque ninguém as ouve. A solidão na multidão é fenômeno contemporâneo e afeta a todas as classes sociais. Em São Paulo, há domésticas de outras regiões do Brasil que não têm com quem conversar nos fins de semana. Idosos que recordam tempos felizes. 

Pessoas que chegam, choram, desabafam e nem precisam voltar mais. Encontraram uma forma gratuita de despejar sua tristeza, angústia ou desespero. Ninguém mais quer ouvir problemas. A sociedade quer se divertir, esquecer seus males, disfarçar, fingir. O que faz aquele que gostaria de partilhar seu desconforto com o semelhante? É interessante pensar nisso e nos tempos estranhos que nos foram oferecidos para esta curta permanência no Planeta Terra. 

JOSÉ RENATO NALINI é Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, biênio 2012/2013. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.


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Não às armas

Dependesse de mim, arma de fogo nem seria fabricada. Por que se produzir algo que visa tirar a vida, o pressuposto à fruição de todo e qualquer direito? Conheço a resposta: arma existe para o indivíduo de bem se defender do mau. Não é isso o que acontece. Em regra, o “homem de bem” não é afeiçoado ao manejo de armamento. 

Quando precisa usar, não raro se confunde, se atrapalha e o resultado é a arma parar em mãos perigosas. O maior número de armas apreendidas foi subtraída pelos bandidos aos “homens de bem” ou às forças militares ou policiais. A facilidade com que se consegue arma no Brasil – onde existe um “Estatuto do Desarmamento” em vigor – explica o campeonato que o Brasil se empenha em conseguir, de país com o maior número de homicídios em todo o globo.

Estamos perdendo a luta contra as armas, assim como já perdemos a guerra contra as drogas. Uma coisa leva a outra. O tráfico de drogas incentivou o tráfico de armas. Possuindo arma de fogo, o homem se sente poderoso. A droga dá coragem a garotos mirrados, frágeis, até de boa índole, para que empunhem arma e vitimem aqueles contra os quais perpetram assaltos. A arma é também uma droga. Quando ela está presente, qualquer discussão pode ser letal. 

A discussão entre marido e mulher chega a ser conflito de morte. A discussão de trânsito é comum terminar em assassinato. As crianças sabem que os pais têm arma e começam a treinar cedo. Os filmes são violentos e mesmo os desenhos perante os quais as crianças ficam anestesiadas diante da TV ou de seus tablets, têm abundância de instrumentos letais. Embora a vida seja considerada por quase todos como o primeiro dentre os direitos fundamentais (pessoalmente a considero supradireito, um pressuposto à fruição dos direitos humanos), ela é pouco prezada no Brasil. 

Por isso se mantém o Tribunal do Júri com toda a sua sofisticação e pouca funcionalidade. Se o homicídio fosse julgado pelo juiz singular, um técnico, haveria rapidez na apreciação dos fatos e não cresceria a sensação de impunidade que todos reconhecem. Quantos os homicidas que são levados a Júri? 

Quantas as mortes que resultam em processo judicial? Parece que nos acostumamos com uma situação e não conseguimos enxergar os equívocos na sua preservação. Mas por ora, basta dizer que se houvesse menos arma no mercado, a morte não encontraria tanta matéria-prima e veria drástica redução em sua colheita.

JOSÉ RENATO NALINI é Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, biênio 2012/2013. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.


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Estados Unidos da amnésia

Era assim que Gore Vidal chamava o seu país. Acreditava que a política norteamericana traíra os princípios fundadores da Nação: “Os Estados Unidos foram fundados pelas pessoas mais inteligentes do país, e desde então, nunca mais as vimos”. Era cético em relação à Democracia: “Parece que um país democrático é um lugar onde são realizadas muitas eleições, a um custo alto, sem discutir questões substantivas e com candidatos intercambiáveis”.

Zombava daquilo de que os americanos se orgulham: “De 4 em 4 anos, a metade ingênua (da população) que vota é incentivada a acreditar que, se pudermos eleger alguém simpático, tudo ficará bem. Mas não ficará”. Era um ensaísta erudito, divertido e perspicaz. Era franco demais, excessivamente apegado às suas próprias opiniões. 

A coletânea de 1993 (“Estados Unidos. Ensaios 1952-1992”) é um compêndio fabuloso que mapeia a cultura e a política do país que ele, a um tempo, amava e odiava. Escreveu dois livros de memórias: “Palimpsesto” e “Point to Point Navigation”. Foi amigo de Eleanor Roosevelt, da Princesa Margaret, do maestro Leonard Bernstein, sem falar em John Kennedy, pois era quase parente de Jackie Bouvier Kennedy e depois Onassis. Ambos tiveram o mesmo padrasto.

Brigou muito: com Truman Capote e com Norman Mailer. Este chegou a dar um soco em Gore Vidal. O que o fez retorquir: “Mais uma vez, faltam palavras a Norman”. Mas foi amigo de Tennessee Williams, cuja peça “De Repente, no Último Verão”, ajudou a adaptar para o cinema. Chegou a se candidatar ao Congresso em 1960, pelo Estado de Nova Iorque e ao Senado pela Califórnia, em 1982. Perdeu em ambas. Maldoso, dizia “Cada vez que um amigo faz sucesso, morro um pouquinho”. 

Doutra feita, falou: “Não basta ter sucesso. É preciso que outros fracassem”. Escreveu 25 romances. O terceiro, “A Cidade e o Pilar”, de 1948, foi colocado numa lista negra, mas vendeu um milhão de exemplares. Durante o ostracismo, continuou a escrever com o pseudônimo Edgar Box. Foi roteirista de cinema e ajudou a reescrever o roteiro de Ben Hur. Polêmico, milionário, criador de casos. Representou uma era americana. Era primo de Al Gore, foi batizado como Eugene Luther Gore Vidal. Morreu em 1º de agosto de 2012.

JOSÉ RENATO NALINI é Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, biênio 2012/2013. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.


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Reabilitação rodriguiana

Quando eu era criança, Nelson Rodrigues era proibido. Quando adolescente, ele era considerado vulgar. De repente, foi resgatado como autor importante, um dos poucos escritores que o Brasil não esqueceu. Este ano se comemora seu centenário, pois nasceu no Recife em 23 de agosto de 1912, registrado Nelson Falcão Rodrigues e morreu amado e admirado em 21 de dezembro de 1980. 

Ele sabia que estava a mexer em vespeiro quando escreveu “Vestido de Noiva”, em 1943. Por isso usou pseudônimo: Suzana Flag. Conhecia bem a alma brasileira. Suas frases o eternizaram. Quem não repetiu mais de uma vez “toda unanimidade é burra”? Há outras menos conhecidas: “a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakesperiana”.  

Sua obra é permanente. Bárbara Heliodora, severa crítica teatral, diz que pelo menos 4 de suas peças tendem a se eternizar, como Shakespeare. São “Vestido de Noiva”, “Boca de Ouro”, “A Falecida” e “O Beijo no Asfalto”. Seu humor ácido não hesitou em colocar o nome de um amigo numa peça: “Bonitinha mas Ordinária ou Otto Lara Resende”. 

Suas provocações estão em seus aforismos: “A companhia de um paulista é a pior forma de solidão”, “Só os profetas enxergam o óbvio”, “Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar”. “Hoje é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo”. “Toda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma”, “Nada nos humilha tanto como a coragem alheia”, “Eu me nego a acreditar que um político, mesmo o mais doce político, tenha senso moral”, “O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. 

Que Brasil formidável seria o Brasil se  brasileiro gostasse do brasileiro”, “Acho a liberdade mais importante que o pão”, “No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte”, “A fome é mansa e casta. Quem não come não ama, nem odeia”, “Não reparem que eu misture os tratamentos de tu e você. Não acredito em brasileiro sem erro de concordância”. “Não há ninguém mais vago, mais irrelevante, mais contínuo do que o ex-ministro”, “Jovens: envelheçam rapidamente!” e “Falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida variedade do vigarista”. Salve Grande Nelson! 

JOSÉ RENATO NALINI é Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, biênio 2012/2013. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.


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Um milhão de homicídios

Em 2009, o Brasil obteve mais um êxito: completou um milhão de homicídios. É um dos países mais violentos do mundo e, em termos absolutos, é aqui o lugar onde mais pessoas morrem vítimas de agressão. 

Os números não mentem e foram analisados por Cláudio Beato, no seu livro “Crime e Cidades” (Editora UFMG). O homicídio é a principal causa de mortes de jovens entre 15 e 25 anos. 

Essa taxa é pouco lembrada quando o ufanismo se regozija pela melhoria nos índices sociais. Mais um dos paradoxos brasileiros, lembra Beato. Para ele, “as chances de morrer, vítima de homicídio, quando se é um homem jovem habitante da periferia, chegam a ser até de 300 vezes mais do que para uma senhora de meia idade que habita bairros de classe média”. 

O que significa isso em termos econômicos? Há dispêndio dos sistemas de saúde, atola-se o Judiciário com inquéritos por homicídio que raramente chegam ao Tribunal do Júri, esquema sofisticado de se proclamar a existência de uma verdadeira Democracia.

Desvalorizam-se os imóveis, investe-se em segurança pública e privada, acelera-se o fenômeno da migração, perde o turismo. Todos perdem quando jovens do sexo masculino, pobres, prioritariamente negros ou mulatos, entregam sua vida à queima do arquivo, ao acerto de contas, à droga que mata imotivadamente, a uma série de causas não seriamente enfrentadas.

Cerca de 5% do PIB de municípios como São Paulo, Rio e BH se perde na violência assassina e isso vai desaguar em 10% do PIB nacional. Em termos de “capital humano”, as perdas são calculadas em R$ 20,1 bilhões por ano, soma estimada do rendimento que as pessoas que morreram teriam durante sua vida.

Os homicídios persistem exatamente nas áreas menos atendidas por equipamentos sociais. Aí é que o Estado some e a criminalidade organizada impera. Impõe suas leis, seu regramento, não se submete ao convencionalismo do Judiciário. E o pior é que há conivência da maior parte da sociedade em relação ao drama. Como escrevi há algum tempo, a morte de moços pobres e de periferia é considerada, por muitos, como “faxina social” e não como “chacina”. E ainda há quem se vanglorie dos ganhos sociais recentes, como se este fosse o melhor dos mundos…  
 
* JOSÉ RENATO NALINI é Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, biênio 2012/2013. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.