Blog do Renato Nalini

Ex-Secretário de Estado da Educação e Ex-Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Atual Presidente e Imortal da Academia Paulista de Letras. Membro da Academia Brasileira de Educação. É o Reitor da UniRegistral. Palestrante e conferencista. Professor Universitário. Autor de dezenas de Livros: “Ética da Magistratura”, “A Rebelião da Toga”, “Ética Ambiental”, entre outros títulos.


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EDUCAÇÃO PÓS-PANDEMIA

            A falta de aulas presenciais não é uma tragédia. Mostrou que o uso da tecnologia é irreversível e que os educadores deveriam ter insistido na adoção de táticas digitais, informatizadas, eletrônicas, telemáticas e quantas mais pudessem advir da era virtual.

            Os alunos já acessavam as redes sociais e tinham desenvoltura no manejo de seus mobiles. Um Brasil que possui mais de 270 mobiles para 210 milhões de habitantes é espaço onde tudo o que puder, deve ser feito mediante uso dessas bugigangas.

            Houve resistência de parte do obscurantismo ao uso dessas funcionalidades. Poderíamos estar muito mais adiantados. Bastaria fazer com que as concessionárias das comunicações disponibilizassem banda larga, fibra ótica e outros recursos para todas as escolas e também para os territórios mais vulneráveis.

            O número de jovens brasileiros talentosos para a criação de softs e de aplicativos ótimos para o processo educacional é crescente. Não canso de dizer que os “nativos digitais” parecem já nascer providos de chips cerebrais. Os smartphones são uma extensão de seus braços. Não se vive sem eles.

            Uma parte do Magistério conseguiu acompanhar essa evolução. Daí o sucesso de muitos docentes que se adaptaram e conseguiram manter o nível do aprendizado e, melhor ainda, do interesse do alunado pelo conteúdo.

            Valeria a pena investir pesadamente nesses professores, para que fossem disseminadores de sua expertise perante os demais. Chamar os youtubers, os alunos com facilidade, os comunicadores, os estudiosos de TICs, valer-se daquilo que já existe em outros setores, mas que será útil também para o ensino.

            Uma ideia que me parece excelente e que não me consta já tenha sido praticada, é a implementação da monitoria reversa. É uma excelente ferramenta para ajudar um professor a aprender como as pessoas mais jovens estão utilizando a tecnologia ou vivenciando suas experiências. Um jogo “ganha-ganha”, pois o jovem vai perceber melhor o que é possível para o seu futuro.

            Já existem programas de monitoria reversa em várias Universidades americanas. É a fórmula ideal para beneficiar os mais idosos, talvez oprimidos pela rápida evolução tecnológica. É apenas uma faceta da constatação de que todos aprendem com todos e que não existe faixa etária exclusiva para o processo de aprendizado. Chama-se “reversa”, exatamente porque é uma inversão da monitoria convencional. Destina-se a propiciar aos maduros a chance de conviver tecnologicamente com os millenials, os que já nasceram nesta era muito estranha para os nascidos na primeira metade do século 20.

            Além da oportunidade de troca de conhecimento, a mentoria reversa é o caminho para o cultivo da humildade, da empatia, da receptividade ao novo. Há imenso potencial benéfico em favorecer contato entre gerações diferentes. Os idosos vão haurir o entusiasmo dos jovens, a sua familiaridade com algo que pode parecer estranho, enquanto não for objeto de integral domínio. Já os mais moços poderão usufruir da tradição amealhada e sedimentada pelos maduros.

            A mentoria reversa pode ser exercida presencialmente, mas também pode ser oferecida pela forma virtual, online. Quem se permitir essa experiência verá que os ganhos serão superiores às melhores expectativas.

            Afinal, a boa convivência com a tecnologia não é decifrar os dispositivos utilizados, mas adentrar às experiências humanas que eles são capazes de criar. Mídias digitais reclamam criatividade, experiência e uso adequado da mente. De nada valeria a tecnologia, examinada teoricamente, de modo abstrato, não fossem as experiências humanas que ela é capaz de proporcionar.

            A educação, exclusiva chave para transformar o Brasil, precisará de engenho, arte, criatividade, ousadia e fé, para a produção de seus copiosos frutos. Como disse uma vez Marshall McLuhan, “moldamos nossas ferramentas, e então as ferramentas nos moldam”. A simbiose homem-máquina abre perspectivas para a resolução de inúmeros problemas hoje aparentemente insolúveis. Abramos nossas mentes, sejamos receptivos ao novo, lembrando que o início deste século já começara com uma advertência: “Inove ou morra!”.

_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020.

    


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MUNICÍPIO; MAIS RECEITA OU DECLÍNIO

            O município brasileiro ganhou status constitucional e passou a fazer parte da Federação assimétrica em 1988. Assimétrica, porque embora considerado entidade federal, não mereceu tratamento consentâneo com sua importância. Os quase seis mil municípios brasileiros lutam com dificuldades. Ficam submetidos a uma União exauriente dos recursos nacionais e perdulária em dispêndio incompatível com a fragilidade da economia.

            Aquilo que era péssimo antes da pandemia, tornou-se ainda pior. Fala-se com desenvoltura no desrespeito ao teto de gastos públicos, sem lembrar de nosso histórico inflacionário e a reduzida confiabilidade do Brasil perante os investidores internacionais. Se isso acontecer, o que é mais do que provável, serão outras décadas perdidas. Tragédia para uma geração que terá de ser bastante severa ao julgar os descalabros de nossa insensata omissão.

            Omissão, sim. A maior parte dos brasileiros acredita piamente na providência estatal. Tudo está confiado ao governo. Responsável pelo nascituro, desde a sua concepção. Pré-natal, acompanhamento da gestante, depois pelo parto, pelas vacinas, pelas fraldas, pela alimentação. Em seguida, pela pré-escola, ensino fundamental, médio e Universidade. Tem de oferecer todos os direitos fundamentais prometidos pela generosa Constituição, que é uma cornucópia de bens da vida e deixou portas abertas para a inclusão de quantos outros a imaginação humana vier a criar.

            Acreditar no Estado, considerá-lo onisciente e onipotente é via paralela à nostálgica visão imperialista. Nunca houve república verdadeira no Brasil, se houvesse um raio X do que significam os valores republicanos. Daí a velha e surrada tática das homenagens, as reverências ao poder, as espinhas dorsais complacentes de quem, pretendendo participar do banquete estatal, ainda que sejam migalhas, se curva despudoradamente diante do transitório chefe.

            Enquanto isso, os munícipes enfrentam uma situação surreal. Mais da metade da população sem esgotamento sanitário. Milhões sem água. Outros milhões sem emprego. Educação capenga. Mobilidade prejudicada por políticas perversas de segregar a periferia, distanciando-a do lugar de trabalho. Precisa falar da saúde, ou os quadros escancarados pela pandemia são suficientes?

            A tragédia teria um resultado benéfico se fizesse uma parcela considerável do povo acordar para a realidade. Colocar freios a um poder que dilapida escassos recursos para destinos perfeitamente dispensáveis. São fartos os exemplos: propaganda institucional, Fundo Partidário, Fundo Eleitoral, empresas que só existem para esgotar o Erário, como aquela encarregada de implementar o Trem Bala para o vexame da Copa no Brasil. Onde o trem? Como esse absurdo, muitos outros existem. Excesso de Estado e mínima dignidade humana.

            As coisas têm de começar no município. É ali que as pessoas nascem, vivem e morrem. A tendência a permanecer nos lindes da cidade é reforçada com o pânico gerado pela peste. Por isso as eleições de 2020 – que deveriam ser realizadas eletronicamente, para não acelerar a morte dos incautos eleitores que se dispuserem a comparecer aos locais de votação – são muito importantes.

            Acenou-se com a extinção de municípios desprovidos de receita para atender às suas finalidades. Embora se considere remota a hipótese, ela chegou a ser pensada pelos responsáveis pelas atuais políticas estatais. Isso mostra a indigência de mais da metade das cidades brasileiras. Elas precisam reagir, se não quiserem continuar na fila de esmolas da União e do Estado.

            Para as que continuarem assim, uma séria advertência: estão minguando os meios financeiros para atender a todas as necessidades. Serão dias de lamúria. Lembrarão os lamentos e ranger de dentes das Escrituras.

            Os municípios precisam se reinventar. Precisam investir na sua vocação natural. favorecer o empreendimento individual. Estimular a criatividade. Cada microempresa gera tributo para os cofres municipais. O empreendedorismo inovador é algo que tem de ser levado a sério em todas as localidades. Favorecer iniciativas como a formação de viveiros, o cultivo de orgânicos, o resgate de receitas caseiras com produtos locais, o turismo regional, tudo tem de ser levado a sério. Se as políticas macro hostilizam a natureza e o ambiente, um conjunto crescente de micropolíticas pode fazer a diferença.

            Talvez seja o momento propício para se levar a sério a regularização fundiária. Todo município tem uma área territorial e, com certeza, parte dela estará em situação irregular. A regularização fundiária alavanca a economia local. Para o poder público, gera a receita do IPTU. O comércio local receberá incentivos porque o possuidor, ou ocupante, ou até o invasor clandestino de ontem, depois desse processo de regularização que envolve a cooperação de múltiplas áreas, se tornará um animado proprietário que edificará, reformará ou tornará mais valorizado o seu imóvel.

            Tudo converge nessa nova fase, para fortalecer as cidades. O chamado “novo normal” será de início o “anormal”. Menos locomoção, menos viagens, menos vontade de ultrapassar fronteiras, mas a valorização do espaço doméstico. A redescoberta do lar. A tendência a permanecer nos lindes territoriais do lugar onde se nasceu ou que se escolheu para viver é algo que não pode ser desprezado.

            A verdadeira autoridade pública é aquela com a qual o cidadão tem oportunidade de ter contato direto. É o Prefeito o administrador de núcleos consolidados de pessoas que têm os seus interesses pessoais vinculados ao destino daquela área territorial. Por isso a importância de eleições locais que considerem a capacidade dos candidatos de devolver a esperança aos moradores de seus municípios.

            Os brasileiros estão assustados, amargurados, desprovidos de esperança de que as coisas voltem a ser como eram antes da praga. Incumbe aos administradores municipais encontrar fórmulas de reanimação da gente local e de mostrar que a vida, a convivência e os negócios dentro de suas cidades ganharão força nova a partir de 2021.

            Nunca faltou ao brasileiro engenho e arte para reagir às adversidades. Nunca houve, neste século, algo tão adverso como a pandemia do coronavírus. É hora de inverter a equação de passiva submissão à vontade da União e fortalecer o município. A instância onde as coisas acontecem e os destinos são selados. A vida do munícipe tem de ser uma vida de benefício para o solo natal ou escolhido. Os homens definem-se no préstimo às causas comuns e na utilidade de suas vidas para melhorar a vida dos demais. E é na cidade onde isso em regra acontece.

_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020.


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GARANTISMO À BRASILEIRA

            Ganhou recorrência no Brasil o chamado “garantismo”, verbete introduzido na doutrina por Luigi Ferrajoli, professor de Filosofia do Direito da Universidade de Roma. Seu livro “Direito e Razão-Teoria do Garantismo Penal” foi disseminado mais no Brasil do que na Itália e logo gerou polarização a dividir os profissionais do universo jurídico.

            O garantismo de Ferrajoli impõe a observância estrita das normas concretizadoras de um processo equilibrado, que não permita confusão entre quem acusa e quem julga. É algo ínsito ao Estado de Direito de índole democrática, opção de grande parte das Constituições ocidentais, inclusive no Brasil.

Subjacente à polêmica, a separação de fronteiras entre moral e direito. Ferrajoli sustenta a tese da “laicidade do direito” e da “laicidade da moral”, a significar “a recíproca autonomia entre as duas esferas: de um lado, o princípio segundo o qual o direito não deve ser utilizado como instrumento de mero reforço (ou mesmo de uma determinada) moral, mas somente como técnica de tutela dos interesses e das necessidades vitais; por outro lado, o princípio inverso e simétrico segundo o qual a moral, se autenticamente praticada, não necessita da sustentação heterônoma e coercitiva do direito, e até mesmo a exclui e refuta”.

            No Brasil, o garantismo tem sido argumento para se exigir o exaurimento das possibilidades de discussão judicial de um delito, por um dos lados, aquele que exerce o direito de defesa. E é combatido por quem considera excessivo o rol de oportunidades para o debate sobre uma situação de nítida infringência da lei penal.

            Ambos os enfoques teriam sua razão de ser?

            É interessante observar que a questão de fundo continua indefinida:  a separação entre direito e moral. Não existe distinção nítida e absoluta. O direito é permeável à introdução de juízos de valor. A positividade não deixa de indicar uma rota teleológica, ou seja: a lei deve apontar para o “dever ser”. É normal afirmar-se que o direito é o “mínimo ético” e Ferrajoli fala em “constitucionalismo ético”. Um pacto fundante deveria refletir a concepção política, econômica, filosófica, sociológica, histórica, mas também moral e jurídica, do povo sobre o qual vai incidir.

Isso não impede que uma Constituição tenha preceitos criticáveis sob o prisma estritamente moral. Um exemplo, aliás por ele citado, é o da Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, a assegurar o direito do cidadão de portar armas. Para Ferrajoli, não apenas contrário a moral, é ainda mais nefasto, pois criminógeno.

            Por sinal, foi o que ele citou em recente entrevista concedida ao jornalista David Lucena (FSP, 25.7.20). Indagado sobre como enfrentar a criminalidade em países com altos níveis de violência como o Brasil, respondeu: “A primeira medida elementar deve ser a proibição radical de armas, que são os principais instrumentos de violência e morte. Os dados estatísticos são impressionantes: o número de assassinatos na Itália em 2018 foi de 345, dos quais 142 consistiam em feminicídios; no Brasil, por outro lado, foi de 57.341. A razão dessa enorme diferença está no fato de que na Itália ninguém sai armado, enquanto no Brasil, como de fato nos EUA e no México, todos se armam de medo”.

            Embora de conhecimento de todos, essa realidade parece não preocupar os responsáveis pelas políticas públicas tendentes à edificação de uma Pátria justa, fraterna e solidária. Promessa do constituinte de 1988 ainda tão longe de se concretizar. E aí surge uma outra ideia de “garantismo”, mais trivial, menos sofisticado. O que seria urgente garantir ao Brasil, seria um ambiente ensejador de convívio pacífico, de favorecer o empreendedorismo, de criatividade, de educação de qualidade e de multiplicação de perspectivas para uma juventude em sua maioria desguarnecida de condições de um futuro promissor.

            O garantismo em sentido jurídico, incessante pregação de Luigi Ferrajoli, continuará a habitar a doutrina, as defesas, os recursos, a prolífica jurisprudência dos Tribunais. Servirá para justificar os insatisfeitos com a infinita possibilidade de reapreciação dos mesmos temas, diante do sistema recursal caótico, fortalecidos a reclamarem penas mais elevadas, redução da maioridade penal, intensificação da próspera indústria do cárcere. Estes invocarão o excesso de garantismo. Expressão que, para Ferrajoli, não tem sentido. Para ele, “garantismo é respeitar as garantias penais e processuais, que são, muito mais e muito antes que garantias de liberdade, garantias de verdade”.

            Os mesmos que bradam pela prisão em segunda instância e que não enxergam racionalidade em uma estrutura que prestigiou o quarto grau de jurisdição, utilizar-se-ão dos fundamentos do garantismo, até às últimas consequências, quando enfrentarem o MP e a peregrinação pelos Tribunais.

            A verdade, muita vez, adquire tonalidades diversas, a partir do ponto pela qual é encarada.

_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020.


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A QUEM A JUSTIÇA SERVE

            O sofisticado equipamento chamado Justiça engloba inúmeros compartimentos. Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Polícia, Procuradorias das Fazendas e demais extensões desse gigantesco ente chamado Estado, Advocacia e Serviços Extrajudiciais. Pode englobar também parcela significativa da Administração Penitenciária.

            As atividades desenvolvidas por esse conglomerado são fartamente abastecidas pelas milhares de Faculdades de Direito e unidades de especialização em Ciências Jurídicas. Nem por isso é possível afirmar que o Brasil seja a nação mais justa do planeta.

            Indicativo de que as pessoas se sentem injustiçadas seria o elevado número de processos judiciais em curso pelos Tribunais. Já chegamos a cem milhões, quando a população era de duzentos milhões de habitantes.

            Falsa e enganosa tal situação. Quem mais litiga é o próprio Estado. É uma espécie de antropofagia. Estado injetando cada vez mais escassos recursos financeiros na máquina de que se servirá para dirimir conflitos que poderiam ser solucionados na esfera administrativa. É uma cadeia que se retroalimenta. Pois há quem sustente que o Judiciário também sirva como instrumento de arrecadação de tributos. O que justificaria, num perverso feed back, a criação de mais unidades jurisdicionais, pois nutririam a famélica vocação do fisco, à espreita de qualquer deslize do contribuinte.

            A perpetuação do esquema se deve também à anacrônica formação jurídica. Treinar o estudante de direito a decorar o infinito acervo de legislação, doutrina e jurisprudência, não chega a motivá-lo a procurar fazer justiça. Isto poderia advir de uma nova concepção de aprendizado das ciências jurídicas. O direito não deixa de ser ferramenta para redução das desinteligências, para tornar mais respeitoso o convívio, para edificar a Pátria justa, fraterna e solidária prometida pelo constituinte de 1988.

            Adestrar para a espontânea observância do que é justo reduziria bastante a proliferação de controvérsias. Todavia, a ênfase das escolas de direito é uma devoção quase fanática pelo processo. A forma ocupa a maior parte das elucubrações dos juristas. A primeira resposta a qualquer questão que surja é o ingresso em juízo.

            Muita resistência às técnicas inteligentes de composição consensual dos conflitos. Disciplinas como psicologia, argumentação, lógica, retórica da persuasão, são sumariamente excluídas da grade acadêmica. Mas sempre haverá espaço para o processo em sua teoria geral, depois minudenciado em múltiplas especializações: processual civil, penal, comercial, tributário, constitucional, ambiental, urbanístico, informático, eletrônico, internacional, telemático, etc. etc. etc.

            Tudo na busca de estratégias que tornem a discussão judicial de um determinado tema real, uma arena de astúcias na qual o vencedor nem sempre é aquele munido de razão e mais prejudicado.

            Houve um movimento na década de noventa, em que o Banco Mundial quis debater os problemas do Judiciário na América Latina. Divulgou um Documento em que os indicadores de ineficiência e ineficácia implicavam em a) atraso; b) extensa acumulação de casos; c) acesso limitado à justiça; d) falta de transparência e previsibilidade das decisões e e) frágil confiança dos cidadãos no sistema.

            Estabelecer diagnósticos sem focar as causas de pouco adianta. Promoveu-se reforma do Judiciário. Criaram-se as defensorias públicas. Consolidou-se o status do Ministério Público, a instituição mais poderosa da República. A criação de Faculdades de Direito foi acelerada.

            Não se modificou a formação jurídica, nem se investiu num modelo de concurso de recrutamento para as carreiras dela provenientes que priorizasse as competências socioemocionais. Tudo continua a favorecer um quadro que é uma contradictio in re ipsa: não é raro que a Justiça possa afligir ainda mais o aflito. Na preservação da estrutura com cinco ramos de Judiciário, quatro instâncias e dezenas de possibilidades de reapreciação do mesmo assunto, a Justiça serve mais a quem não tem razão. O devedor consegue prazos que o mercado não oferece, nem o sistema bancário, nem as instituições financeiras. Os melhores talentos conseguem detectar as vulnerabilidades do ordenamento processual e obtêm inacreditáveis prazos. Enquanto aquele que tem razão chega à conclusão de ser inegável o acerto de Mestre Joaquim Canuto Mendes de Almeida: “Na verdade, não há direito de ação. É tamanho o sacrifício de quem enfrenta a Justiça, que esse instituto deveria ser chamado “ônus de ação”.

            As vicissitudes e a álea do Judiciário obrigam muita vez o injustiçado a fazer acordo desvantajoso. Na linha do “antes um mau acordo do que uma boa demanda”. Mas com o ressaibo amargo de quem sabe que um sistema de justiça eficiente garantiria outro resultado.

            Os pensadores que oferecem obras doutrinariamente consistentes e providas de fundamentos científicos, bem poderiam também colaborar para o aprimoramento funcional de um equipamento que, a despeito do empenho de tantos devotados, continua a produzir vítimas. Lamentavelmente, as que nele acreditaram e que, não raro, saem frustrados e descrentes na Justiça dos homens.

_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020.   


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PROFISSÃO: HISTORIADOR

            Finalmente, uma boa notícia! A Lei 14.038, de 17.8.2020, regulamenta a profissão de historiador. Acredito seja significativo gesto para prestigiar quem se devota ao estudo da História, cujo aprendizado incessante é roteiro seguro para perseguir a perfectibilidade. Aprende-se com a História. A não repetir erros, a procurar caminhos seguros. Mais do que isso, a História é a fórmula de encadeamento das experiências humanas e de preservar o respeito devido aos antepassados.

            Natural anseio humano é reconstituir o trajeto dos que nos antecederam e aos quais somos tributários de reconhecimento. Quem não venera os pósteros sente-se um elo desvinculado, sem parâmetros ou referências. Por isso, bem vindo o ordenamento regulatório.

            Além de consolidar a profissão de historiador, o diploma estabelece os requisitos para o exercício dessa atividade profissional e institui o registro em órgão competente. Explicita, como não podia deixar de ser, à luz da Constituição, a liberdade para o exercício da profissão historiador, atendidas as qualificações e exigências estabelecidas na lei.

            Tal exercício é facultado aos portadores de diploma de curso superior em História, seja por instituição regular de ensino no Brasil ou no exterior. Neste caso, após revalidação nacional. Também aos portadores do título de Mestrado ou Doutorado em História, aos portadores de iguais títulos, em programa de pós-graduação reconhecido pela CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Os profissionais diplomados em outras áreas, desde que tenham exercido por cinco anos a atividade de Historiador também são credenciados como profissionais historiadores.

As atribuições de historiador incluem o magistério da disciplina em estabelecimentos de ensino fundamental e médio, desde que atendida a LDB – Lei de Diretrizes e Bases, n.9.394, de 20.12.2996, quanto à obrigatoriedade de licenciatura. A eles também incumbe a organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre História. Mais ainda, planejamento, organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica, assessoramento, organização, implantação e direção de serviços de documentação e informação histórica.

Ao historiador compete a atividade de assessoramento quanto à avaliação e seleção de documentos para fins de preservação, a elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos. Quando se tratar de provimento e exercício de cargos, funções ou empregos de historiador, é obrigatória a comprovação de registro profissional. Todas as entidades que prestam serviços em História deverão manter, em seu quadro de serviços ou em regime de contrato de trabalho para prestação de serviço, historiadores legalmente habilitados.

Por fim, o exercício da profissão de historiador reclama prévio registro perante a autoridade trabalhista competente.

Regulamentar a profissão de historiador é um avanço, embora seja previsível o advento de uma discussão análoga à que envolveu a profissão de jornalista há algumas décadas.

Nem todos os historiadores, assim considerados os autores de livros de História, passaram por uma Faculdade de História. Há consagrados literatos que ofertaram ao público obras aplaudidas por reconhecida fidelidade e consistência, mas que nunca se submeteram a um vestibular de História.

Quando se discutiu a profissão de jornalista, enfrentou-se questão semelhante. Aprendia-se a ser jornalista dentro do jornal. Quantos jovens, às vezes até crianças, quando se cultivava o brocardo “trabalho de criança é pouco, quem despreza é louco”, começaram limpando as oficinas, cuidando das caixas com os tipos em chumbo, depois fazendo revisão, rascunhando notícias e acabavam como redatores-chefes.

À época, polemizava-se a respeito da obrigatoriedade de um curso de jornalismo, submeter-se a uma Faculdade de Comunicação, para a obtenção de um diploma que nem sempre correspondia à vocação do seu portador.

A solução foi abrir oportunidade para que os jornalistas que exerciam a atividade em caráter profissional pudessem obter registro junto às repartições do Ministério do Trabalho. Esse registro, anotado na Carteira Profissional, foi o que permitiu que inúmeros excelentes profissionais não fossem arremessados ao desemprego, enquanto o Brasil se adaptava à exigência de diploma de nível superior para jornalistas.

Talvez o tratamento mais adequado para a presente situação fosse aj possibilidade desse registro. O fato de haver cursado uma Faculdade de História não faz um historiador. Para isso, é preciso talento de pesquisa, paciência para ir às fontes, uma enorme paixão pelo passado, já que a história é retrospecto do que já foi. Não se faz história para o futuro.

De qualquer forma, para um Brasil tão desmemoriado e tão esquecido de suas melhores figuras, ávido por cultuar o detentor de poder, enquanto no exercício da autoridade, é um passo alvissareiro reconhecer a profissão de historiador. Prognóstico de novos tempos? Oxalá seja verdade.

*José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020.


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JULGAMENTOS NO STF

            “A faculdade de julgar constitui um talento particular, que não pode ser apreendido, unicamente exercitado”. Foi o que disse Kant, na sua “Crítica da Razão Pura”. Quando fala em “talento particular”, o foco é a habilidade de interpretação da norma. Se o juiz fosse o “autômato da lei”, tornar-se-ia um profissional descartável. A inteligência artificial consegue identificar a solução legal para a maioria das questões submetidas hoje ao Judiciário, com rapidez e formal exatidão, ambas superiores à capacidade humana.

            Um cego servo da lei enxergaria as normas jurídicas “mais como fórmulas vazias do que como princípios” e ignoraria a “tensão do entendimento necessária para retirar as normas da sua generalidade”, é o mesmo Kant ensinando há mais de dois séculos.

            Uma decisão judicial é um ato de reflexão. O julgador não é um robô. Ele é chamado a pensar a norma, raciocínio que permitirá subordinar o particular à experiência do universal e chegar o quão perto possível seja da utopia chamada justiça.

            Não é fácil obter exata compreensão do que seja julgar. É óbvio que julgamentos superficiais, quanta vez levianos, são feitos diuturnamente por todas as pessoas. De forma aleatória e inteiramente irresponsável. Mas o juiz é aquele que não só julga, mas tem de fundamentar e assinar. A fundamentação é a explicação do seu raciocínio. O juiz responde pelas consequências de sua decisão. Ela impacta um sem número de seres humanos. Nem sempre é só a parte, ou as partes, mas uma comunidade inteira afetada por um julgamento.

            Isso vale para o juiz singular, vale para os tribunais, onde a responsabilidade é coletiva, mas o fardo é partilhado mediante participação de outros julgadores experientes, cada qual corresponsável pelo resultado.

            E em relação ao STF? Isso também vale?

            A Suprema Corte é algo singular. Não deveria se resignar a proferir julgamentos como os realizados pela Magistratura nacional, senão concentrar-se na missão da guarda precípua da Constituição.

            Uma Constituição é um texto vivo e dinâmico. O exemplo norte-americano é válido e atual. Um encadeamento de palavras que subsiste por dois séculos e meio, superando a profunda mutação da sociedade humana deveria orientar os constituintes das demais Democracias.

            Aqui, a Carta Cidadã é o repositório de todas as pretensões e anseios represados durante vinte e um anos de autoritarismo. Incluiu-se nela denso material que não precisaria estar na Constituição. Algo que também nos distingue dos ianques e que é paradoxal: nossa lei fundamental é do tipo rígido, precisa de um quórum qualificadíssimo para ser alterada. A deles é flexível, pode ser modificada pelo processo legislativo comum. Como explicar que já tenhamos mais de cem emendas, fora as seis de revisão, dezenas de PECs em curso e a Constituição Americana tão poucos acréscimos?

            Se o STF assumisse a função de Corte Constitucional e abdicasse de todas as demais atribuições, o Brasil seria outro. O flagelo da “insegurança jurídica” é também produto dessa insuficiência do Supremo, ao sinalizar à Nação o que é válido, porque compatível com a Carta ou o que não existe, porque não se ajusta à sua letra ou espírito.

            Absorvendo tarefas de outros tribunais – basta dizer que o STF é a segunda instância dos Juizados Especiais – não há condições de vencer a demanda, porque a própria Constituição ampliou o elenco de possibilidades de se aferir constitucionalidade de leis e atos normativos.

            O enfrentamento da constitucionalidade é a estratégia para trazer um pouco mais de segurança jurídica ao Brasil. Ronald Dworkin, em sua obra “Levando Direitos a sério”, diz que “a escolha entre uma norma válida e outra inválida obedece a considerações que se encontram para além das próprias normas: a ética, se se admitir que o direito contém uma representação da obrigação fundada no respeito pelos outros e pelo seu projeto de vida em comum; a política, se se admitir que esta se encontra, em parte, vinculada a formas institucionais pré-estabelecidas, ordenadas em função de uma comunidade que pretende, ela própria, apagar os traços da violência originária do poder”.

            Por isso, não faz sentido criticar integrantes do STF por não serem juízes de carreira. Na verdade, uma Corte Constitucional é a garantia de que uma Democracia possui uma Constituição, que ela vale, que ela deve ser observada e que o sistema institucional repousa numa teoria moral muito expressiva: os seres humanos possuem direitos morais contra o Estado. Eles são válidos e devem ser respeitados, principalmente quando sobrepairam ameaças de afronta desse patrimônio jurídico-moral por parte do próprio Estado que só existe para garanti-los.

*José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020.    


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DEMOCRACIA ESTÁ NO FIM?

            Muitos livros foram escritos sobre o fim da democracia, com a chegada de líderes populistas em alguns Estados considerados estáveis em vivência democrática. Li alguns deles, por diletantismo. Não pensei que isso pudesse nos afetar. Mas acontecimentos recentes mostram como é possível retrocesso nas conquistas que até ontem pareciam definitivas.

            David Runciman, que escreveu “Como a democracia chega ao fim”, diz que somos reféns do passado. Pensamos em fascismo, nazismo e golpes de Estado, mas nossas sociedades são complexas demais para colapsar de igual maneira. A ordem é novas estratégias de pensar o impensável. A partir de dados evidentes à percepção da lucidez que ainda subsiste.

            Uma das questões recorrentes é a consistência do fetiche da lei. Ainda se acredita que a lei seja suficiente para resolver todos os problemas. É uma ilusão acreditar que a lei seja a resposta eficiente para todas as carências e anseios humanos.

            A maneira mais simples de se “mostrar serviço” na Democracia representativa é fazer uma lei nova. Embora o processo legislativo seja complexo e cheio de meandros, a lei é um biombo de que se utiliza a sociedade para disfarçar reais problemas.

            Vide a questão da segurança pública. Atenuar as causas dos crimes é dispendioso. Implicaria em educação de qualidade, em todos os níveis. Educação formal ou convencional na escola e educação permanente e continuada para toda a sociedade. Ensinar os pais, que nem sempre são cuidadosos em relação aos filhos. O desaparecimento daquele zelo amoroso da família faz com que o adolescente procure se refugiar na droga e daí possa ingressar na delinquência.

            Pobreza não é causa, mas é fator de criminalidade. O que fazer quando não se tem pão nem emprego? Morrer de fome? A resposta legal é construir mais presídio, alimentar a cadeia produtora da cultura do cárcere, que satisfaz a muitos dos pretensos homens probos e respeitados na sociedade do capitalismo selvagem.

            A lei criminal, neste Brasil de tanta miséria, é a rota de fuga para não encarar o problema. Daí é que a responsabilidade vai toda vorazmente canalizada para a Justiça.

            O problema não é do Parlamento, mas de uma sociedade heterogênea e desigual. Narcisista, egoísta, imediatista e insensível. Mas o Parlamento a reflete. Onde está o legislador que se preocupe com a identificação da “vontade geral”, se as vontades são múltiplas e antípodas?

            O Parlamento contemporâneo é a expressão exata do feudalismo. Setores articulados elegem seus representantes que defendem o interesse específico daquele nicho e o restante, Deus resolva.

            As ilhas que navegam no Parlamento às vezes colidem, outras vezes formam um arquipélago coeso, quando um interesse comum faz com que se esqueçam diferenças e se unam para obter o benefício. Chegam a um acordo e mais uma nova lei. Para o Judiciário, o dogma é não pensar, mas aplicar cegamente a lei.

            Assim funciona um sistema chamado democrático, mas que favorece aqueles que têm condições de fazer valer a sua vontade. Legislar para grupos ou para interesses muito localizados é uma das causas da agonia democrática.

            Incumbe a quem se preocupa de fato com o Brasil, reler a obra de Jean Cruet: “A vida do direito e a inutilidade das leis”. A síntese é a de que sempre se viu a sociedade modificar a lei, nunca se viu a lei modificar a sociedade.

            O que falta para o Brasil é a observância espontânea do direito, que é na verdade bom senso e não a sofisticação criada para satisfazer apenas alguns. Honrar as obrigações assumidas, respeitar a palavra empenhada, tratar o próximo como a si mesmo, ou não fazer aos outros o que você não quer que os outros lhe façam. A chamada “regra de ouro’ da civilização, de tão fácil compreensão e de tão difícil observância.

*José Renato Nalini é advogado, Professor da Pós-graduação da UNINOVE e autor


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SUICÍDIO É LOUCURA?

            Tem-se afirmado que a pandemia mexe com as almas. O pânico deixa as pessoas amarguradas. Quem não tem boa reserva de paciência e de equilíbrio, pode chegar a perpetrar suicídio.

            O suicídio é mistério. Há quem sustente que só o pratica aquele que ficou privado da razão. Teve um surto e, nesse repente, atenta contra a própria vida. Mas seria isso loucura? Chesterton disse que “a maneira como se encara vulgarmente a loucura é errônea: o louco não é o homem que perdeu a razão, mas o homem que perdeu tudo, menos a razão!”.

            Fernando Pessoa, esse português que idolatramos, chegou a escrever: “Só a loucura é que é grande. E só ela que é feliz”.

            O suicídio pode ser uma ideia a frequentar mentes lúcidas e brilhantes. Por exemplo: o grande pensador brasileiro Alceu de Amoroso Lima, que escrevia sob o pseudônimo Tristão de Atayde, ficou tentado a praticá-lo. Quem o diz é Evaristo de Moraes Filho, confrade seu na Academia Brasileira de Letras.

            No ensaio “A loucura e o suicídio na temática de Alceu”, ele observa que, a despeito da jovialidade, higidez mental, entusiasmo e idealismo, “em certos momentos, principalmente durante o longo processo de sua conversão, temeu a loucura, desejou a morte e esteve à beira do suicídio. Depois de árduo e demorado sofrimento, a fé o salvou, voltou a encontrar Deus e a alegria de viver”.

            Ele tivera um precedente em família. Sua irmã mais velha, Abigail, teve de ser internada num sanatório em Pau, no sul da França, nos Pirineus. Ali permaneceu de 1912 a 1943, ano em que faleceu. Era uma linda menina, para quem Machado de Assis chegou a fazer versos, pois se encantava com seus cachos, quando passava pela casa dos pais de Alceu e a via junto às grades do jardim.

            Foi o primeiro embate do grande brasileiro com a loucura, a “luta impotente da ciência contra as sombras do crepúsculo interior”.

            Era rico, era querido, formara-se com brilhantismo. Entretanto, aos vinte anos, sentia-se inútil e vazio. Não fora o seu encontro com Deus e teria privado o Brasil de uma de suas maiores fulgurâncias.

            Não foi uma conversão sentimental. Foi uma renhida luta com a razão. Demandou muita angústia e sofrimento. Em 9.8.1927, ele escreve: “Sinto-me num beco sem saída. Sinto-me ferido de morte. Sinto-me velho. Sinto-me sem força. Sinto-me esgotado!”.

            Quando, por fim, a sua mente aderiu ao chamado de Cristo, confessou: “Se não fora a fé em Deus, ou o que quer que seja de covardia e de baixa conformidade, talvez o suicídio me fosse também a única porta aberta”.

            Interessante observar que, sendo brilhante, considerava-se medíocre. Questionava sua condição aristocrática e burguesa, diante de tanta miséria no Brasil. Em correspondência com Jackson de Figueiredo, teve a coragem de dizer: “o homem é uma experiência que Deus abandonou”. Jackson, que atuava para trazê-lo ao abrigo da Igreja, ficou alarmado. Alceu não estava bem. Mais adiante, afirmou “Eu duvido que haja quem se despreze tanto a si mesmo como eu”.

            Criado num ambiente diferenciado, de pessoas também abonadas, não se sentia à vontade nesse ambiente: “Sou um solitário, um inadaptável. Um desgraçado esquizoide. Só me sinto bem com gente simples, sem preocupações transcendentes. E, sobretudo, com gente boa”.

            Uma crença racional, equilibrada, sem fanatismos e sem intolerância que tipifica tantos beatos – na verdade, os “sepulcros caiados” do Evangelho – tornou Alceu de Amoroso Lima um farol a iluminar a sua geração e as posteriores.

            Já maduro, volta a encarar a loucura e o suicídio, mas agora de forma serena e prudente: “Só o homem tem realmente o horror à morte. Ou o medo da morte. Exatamente por ser, por natureza, votado à imortalidade. Nascemos para viver e sobreviver. Não para morrer. A procura voluntária da morte é um ato negativo. Fruto de uma frustração com a vida. E, por isso mesmo, inumano. Mas digno de nossa maior piedade. Só os jovens e os desesperados se suicidam. Tanto uns como outros pelo amor intenso pela vida. Os jovens, porque no fundo não creem que a morte seja um fim. Os desesperados, porque não encontraram na vida tudo quanto esperavam. Uns e outros se iludem, mas não dignos de toda a nossa compaixão. E do nosso maior respeito. Forçam prematuramente as portas da eternidade, como forçaram cedo demais as portas do tempo”.

            Alceu conseguia influenciar pessoas com tendências suicidas, pois passara pela tentação que, muita vez, pode rondar cabeças atormentadas. Por isso podia dizer, com naturalidade: “Sempre tive o maior respeito por quem considera a morte como o fim da vida. Principalmente pelos suicidas, inclusive porque, por muito tempo, também assim pensei. Mas hoje creio, cada vez mais firmemente, que, ao contrário, a morte é justamente um desdobramento da vida”.

            Nestes dias angustiantes de confinamento, quantos os que se martirizam acreditando que nunca mais recuperarão suas economias, não concretizarão os projetos, ou qualquer outra decepção. É o momento de ajuda-los com o abraço, com a palavra amiga, com o olhar compassivo. Pode ser a chave mágica, impediente de uma partida extemporânea.

*José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020.


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CIDADANIA PODE E QUER MAIS

            A inesperada paralisação do mundo sacudiu setores em regra resistentes ao enfrentamento da inércia e fez com que mostrassem coragem e inventividade. O universo jurídico está se reinventando.

            Já era tempo. Contribuiu para isso o notável avanço dos serviços extrajudiciais, aqueles exercidos pelos antigos cartórios. No momento em que se substituiu o modelo de sucessão hereditária pelo concurso público de provas e títulos, conferiu-se à categoria a condição necessária para um evidente protagonismo.

            As delegações extrajudiciais exercem função estatal, mas com as características da iniciativa privada. Isso confere autonomia ao titular, que se apercebeu da profunda mutação estrutural do mundo, hoje iniludivelmente imerso na Quarta Revolução Industrial.

            A partir de então, as práticas se tornaram mais eficientes, porque mais inteligentes. Não se vedou a utilização das mais modernas tecnologias. Ao contrário: elas foram intensificadas e isso garantiu a criação das Centrais Eletrônicas. Tudo aquilo que hoje mostra saudável subsistência das funções delegadas, a despeito da gravíssima pandemia que nos assola.

            Se muito ainda resta a fazer, muito já se alcançou.

Alguns sinais do avanço permitem se acredite numa promissora fase para a cidadania, que não pode ficar sem os préstimos extrajudiciais. O CNJ atua a estimular a utilização do instrumento virtual. Instiga as Corregedorias locais a também trilharem idêntica direção. E com aprimoramentos, como é o caso da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo.

            Duas atuantes entidades de classe das delegações extrajudiciais celebraram saudável convênio. A ARPEN congrega os registros civis da pessoa natural. A mais democrática das atuações confiadas aos antigos cartórios, porque toda criatura da espécie nasce, muitas delas se casam e, inevitavelmente, chegam ao termo da existência. Todos precisam dos assentos lavrados pelo Registro Civil. Tanto que ele é hoje, por força de lei e reconhecimento do STF, ofícios de cidadania. São depositários do acervo de informação mais sensível à Nação: têm o conjunto de dados sobre os humanos, desde o nascimento, até à sua derradeira partida.

            A ARISP é a entidade associativa dos registradores de imóveis, aqueles que garantem o direito fundamental de primeiríssima dimensão, a propriedade imóvel. São as muralhas contemporâneas, na metáfora medieval. Alguém só está seguro de que sua propriedade não será esbulhada, ou invadida, ou reivindicada, se ela estiver sob a tutela do Registro de Imóveis. Pressuposto a que o Judiciário reconheça e assegure as prerrogativas do dono.

            Ambas as associações firmaram convênio para vigorar durante o confinamento. Ele autoriza que os documentos necessários à garantia imobiliária, sejam transmitidos por via eletrônica de qualquer Registro Civil.

            É óbvia a capilaridade dos Registros Civis das Pessoas Naturais. Testemunhei, durante a Corregedoria Geral da Justiça do Estado, no biênio 2012-2013, que distritos em que o Estado era absolutamente ausente, contavam com a devoção do registrador civil. Qualquer interessado na blindagem registral imobiliária pode estar distanciado da sede do RI competente. Mas terá à sua disposição o Registro Civil das Pessoas Naturais.

            A providência permitirá a utilização desse instrumento garantidor do direito de propriedade ao cidadão que teria dificuldade de locomoção até à sede da circunscrição imobiliária.

            Passo importante, aprovado pelo Corregedor Geral da Justiça, Desembargador Ricardo Mair Anafe, magistrado há muito conhecedor da realidade cartorária paulista. Não é demasia reiterar que a mais inteligente estratégia do constituinte de 1988 foi converter os antigos cartórios em delegações confiadas à severa fiscalização do Poder Judiciário.

            Os delegatários são concursados, encarregam-se de função estatal de relevância extrema e o Governo não investe um centavo na atividade, exercida em caráter privado pelo titular. Ao contrário, leva considerável percentual dos emolumentos – remuneração que o usuário destina ao serviço. Essa tática permitiu que o setor avançasse anos luz, mesmo à frente do sistema Justiça estatal e estivesse pronto para o enfrentamento de flagelos como aquele a que estamos submetidos.

            Mais ainda há de ser feito. Como a autorização à prática de diversas alienações fiduciárias em garantia, tendo como garante o mesmo imóvel. Um tesouro creditício mal aproveitado, mas que terá de ser encarado no momento em que a economia necessita de criatividade e ousadia, porque o impacto é avassalador.

            Capacidade e qualificação não faltam aos delegatários que, para sua subsistência, dependem de produtividade, de investimento em inteligência, em práticas eficientes e afinadas com as necessidades do cidadão.

            Tudo está pronto para que tais serviços absorvam grande parte daquilo que a burocracia conservou com ortodoxa proteção procedimental e ritualística, ambas suscetíveis de flexibilização não porque existe pandemia, porém porque o mundo mudou.

            A peste veio mostrar que não se pode perder tempo com excessivos formalismos, que a vida humana é frágil e efêmera e que os resultados importam, sim. As Centrais Eletrônicas já comprovaram sua viabilidade e segurança. Podem abreviar trâmites, evitar locomoção física e oferecer segurança efetiva, com vistosa economia de recursos.

            Que venham mais ousadias, pois o terreno da Justiça é fecundo e fértil para abriga-las.

*José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação em direito da UNINOVE e foi Corregedor Geral da Justiça-SP em 2012-2013.