Arquivo do mês: março 2013
Um lugar melhor
A vocação de cada ser humano é fazer do mundo um lugar melhor. Essa a única razão que justifica haver nascido. Se o planeta ficar pior depois de minha chegada, por que foi que eu nasci? Ter consciência dessa missão é imprescindível para que as pessoas se compenetrem do que devem fazer durante este curto período de permanência entre os vivos.
Mas o mundo não anda bem, sinal de que a lição não foi aprendida. A violência faz vítimas e agora em todos os quadrantes, não mais na periferia. A lei diz uma coisa, a realidade escancara outra. Há um Estatuto do Desarmamento, mas as mortes diuturnas são perpetradas com armas de fogo. Pessoas continuam a ocupar passeios, praças, desvãos do comércio.
Ninguém se sensibiliza com isso. Não se chega a um acordo sobre se é conveniente interná-las compulsoriamente ou, como se diz numa forma eufemística, impingir-lhes internação involuntária. As mortes no trânsito traduzem uma falta de educação intensificada à direção de automotores.
Quem não respeita o próximo nas relações do dia-a-dia, torna-se uma fera ao volante. Tolerância zero pode assustar por alguns dias. Logo se cai no marasmo. A resposta à criminalidade continua a ser o cárcere. Não se leva a sério a situação caótica do sistema prisional, que teria de contar com uma prisão por mês apenas para abrigar os indivíduos que já têm mandados de prisão expedidos.
Há toda uma indústria a insistir na edificação de presídios e na multiplicação do sistema de administração penitenciária. A sociedade que produz infratores parece não se incomodar com o fato de ter falido o sistema preventivo. A repressão é a palavra de ordem. Só que ninguém quer cadeia perto de casa. Cadeia boa é no município do outro. Bem distante daquele em que se habita.
Educação de berço não é mais responsabilidade dos pais. Exige-se da escola. E esta não dá conta de suprir aquilo que deveria vir do berço. As crianças são mimadas, não podem ser repreendidas, senão ficarão traumatizadas. “Ai de quem mexer com meu filho!” é a palavra de ordem dos orgulhosos pais de seus pupilos tiranos. Será que o mundo está caminhando para se tornar um lugar realmente melhor?
JOSÉ RENATO NALINI é Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, biênio 2012/2013. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.
Quebrar estereótipos
Programa de índio
Dom Pedro Casaldáliga é bispo emérito de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, e inimigo declarado daqueles que pretendem acabar com o remanescente indígena do Brasil. Sua história é a da insegurança que persegue aqueles que se opõem a uma só e reducionista visão de desenvolvimento.
Além dele, outras lideranças indígenas e agentes da pastoral estão ameaçados desde que o Incra iniciou o processo de desintrusão da área hoje chamada Gleba Suiá Missu. Essa área está situada entre os municípios de São Félix do Araguaia, Alto Boa Vista e Bom Jesus do Araguaia. Estudos antropológicos comprovam que o povo Xavante ocupava o território muito antes dos primeiros não índios lá chegarem.
Em 1966 os índios foram levados em aviões da FAB para 400 quilômetros além. Dois terços da população indígena foram dizimados por sarampo. Em 1980, as terras foram adquiridas pela petrolífera italiana Agip Petróleo, que veio a ser internacionalmente pressionada a devolver o território a seus donos. Em 1992, durante a Eco do Rio, a empresa se comprometeu a devolvê-lo.
Mas os grandes fazendeiros se opuseram. Pressionado pela comunidade internacional, o Governo Brasileiro em 1998 reconheceu a propriedade legítima do povo indígena, o que restou registrado em cartório. Mas só em 2010 é que a Justiça Federal determinou, em decisão unânime, a saída dos não-índios dessas terras.
Durante todo o tempo dessa epopeia, D. Pedro Casaldáliga permaneceu ao lado dos índios. Mas sofreu as consequências disso. É um candidato a se tornar outro Chico Mendes, ou irmã Dorothy Stang, ambos assassinados pela cupidez de quem quer mais terras do que consegue administrar. Quando o Brasil foi descoberto, inúmeras nações indígenas aqui estavam e o território não havia sido dizimado como hoje, inteiramente descaracterizado, a mata destruída, a água poluída, a atmosfera conspurcada.
Quase todas as etnias desapareceram. Restam poucos índios, como os guarani kaiowás, os pataxós, os tupinambás, os tembés. Menor ainda o número de quem se atreve a defendê-los. A maior parte dissemina as versões de que o índio quer motosserra, vende minérios para estrangeiros, fala inglês. Quase ninguém, como D. Pedro Casaldáliga, tem coragem de reconhecer que não se está entregando terra ao índio. É mera devolução do território ao seu dono.
JOSÉ RENATO NALINI é Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, biênio 2012/2013. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.
Revolução na Justiça
O Judiciário Paulista vivenciará uma revolução nos próximos anos. Aliás, ela já teve início. É a informatização sem volta, imersão do universo da Justiça na cibercultura, que é irreversível e sem a qual o serviço público encarregado da resolução dos conflitos não conseguirá atender à demanda. O legislativo já oferecera sua contribuição para a implementação do processo digital desde 2006.
Mas entre a intenção e a concretização, há sempre um fosso, aparentemente intransponível. Só que agora, a gestão Ivan Sartori no TJSP resolveu transpô-lo. Já iniciou o PUMA – Plano de Unificação, Modernização e Alinhamento, começando com a informatização do Colégio Recursal Central. O processo entrou em operação no dia 28 de janeiro, com a capacitação prévia do funcionalismo que vai operar o novo sistema.
O foco é tornar mais fluida a tramitação e mais rápida a outorga da prestação jurisdicional. Em seguida virá a Câmara Especial, depois a Seção de Direito Privado 1, a Seção de Direito Público, a Seção de Direito Privado 2, a Seção Criminal, a Seção de Direito Privado 3 e, por último, o Órgão Especial.
Durante todo o ano de 2013 tais etapas se sucederão, de maneira que até 2014, toda a Segunda Instância estará totalmente informatizada. O peticionamento será obrigatoriamente eletrônico. Isso fará com que se reduza o tempo de tramitação dos processos originários e ainda haverá enorme economia em dispêndio de papel. A Justiça de São Paulo é outra a partir desse acelerado ritmo na padronização dos procedimentos, na redução paulatina do suporte papel.
Verdade que haverá um tempo de hibridez: enquanto não houver a informatização de toda a primeira instância, ainda haverá processos de papel no Tribunal. Mas todos os agravos, mandados de segurança e outros feitos originários já serão virtuais. É preciso que as Faculdades ensinem seus alunos a manejar os equipamentos e a dominar as linguagens do presente, que os grossos volumes de ações em papel estão condenados a desaparecer.
Ainda bem! Se a informática funciona para Bancos, para supermercados, para as comunicações em geral, por que o universo Justiça há de permanecer atolado no anacronismo, resistindo a assumir a cibercultura? É um caminho sem volta e quem não se acostumar será excluído de um serviço que tende a se tornar realmente eficiente.
JOSÉ RENATO NALINI é Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, biênio 2012/2013. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.
Ética: qual o seu sentido?
Ética é a ciência do comportamento moral do homem em sociedade. Mais singelamente, aproxima-se de moral, porque ambas têm idêntica raiz: os costumes consolidados após longa reiteração, porque naturais, ínsitos à natureza humana.
Presente em todos os discursos, a palavra ética é muito pronunciada e pouco observada. Em nada contribui para o aprimoramento dos hábitos, notadamente os da política, tergiversar sobre o seu conteúdo mínimo. Assim, quando se fala que ética é meio e não dogma, sem dúvida enfraquece-se o anseio de tornar menos nebulosas as relações na política partidária.
Ética, em regra, não se presta a designar coisas diversas. Ela tem o sentido de higidez, de irrepreensibilidade, de correção, de postura moral. Quando sentidos diversos remetem ao mesmo referente – cão e cachorro, por exemplo – é viável o intercâmbio sem prejuízo para a compreensão. Mas isso não corresponde, em absoluto, a todas as situações.
É que “as línguas naturais têm o poder de construir o universo ao qual se referem; podem obter um universo de discurso imaginário” (Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, “Dicionário Enciclopédico das Ciências de Linguagem”).
Por que isso é importante: em certos contextos, a maneira diferente ou sentido de se falar do mesmo objeto revela pontos de vista distintos. É que o discurso nunca é neutro: “as palavras, expressões e proposições mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam” (M.Pêucheux, “Semântica e Discurso”).
Isso pode acontecer, por exemplo, quando se analisa a atuação do MST. Os proprietários rurais chamam de “invasão” a violação à propriedade privada e à lei e os militantes do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – denominam a mesma prática de “ocupação”, a sugerir ação legítima e pacífica de adentrar as áreas ociosas. São duas palavras para designar a mesma prática. Produzem significados diferentes, antagônicos, opostos. Qual é o verbete certo? Depende! Não há um sentido correto, exato e neutro.
Todavia, o mesmo não ocorre com ética. Se ela vier a ser usada para exprimir algo que não seja irrepreensível, hígido, moralmente bom, de nada mais valerá incluí-la em nossos dicionários. Sinal expressivo destes tristes tempos.
JOSÉ RENATO NALINI é Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, biênio 2012/2013. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.