Blog do Renato Nalini

Ex-Secretário de Estado da Educação e Ex-Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Atual Presidente e Imortal da Academia Paulista de Letras. Membro da Academia Brasileira de Educação. É o Reitor da UniRegistral. Palestrante e conferencista. Professor Universitário. Autor de dezenas de Livros: “Ética da Magistratura”, “A Rebelião da Toga”, “Ética Ambiental”, entre outros títulos.


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MENOS ESTADO, MAIS CIDADANIA

            O Estado foi uma invenção para tornar viável o convívio entre os homens. Nem sempre existiu. A teoria sustenta que existe a remota possibilidade de uma sociedade natural, resultante da cooperação, a tornar desnecessário o uso da força. Rousseau, no seu “Contrato Social”, assinala que os seres humanos nascem livres e providos de boas intenções. É a sociedade que os corrompe. Por isso é que permitem a subtração de ínfima parcela de sua liberdade, para que a resultante de todas essas subtrações venha a ser um instrumento de coordenação da vida social. Ou seja, o Estado.

            Já Hobbes, cuja mãe tivera uma gestação perturbada por conflitos cruentos, no “Leviatã” defende a renúncia de toda a liberdade para fazer surgir o ente poderoso, aliás onipotente, ao qual tudo sacrificaremos, a fim de evitar “a guerra de todos contra todos”. Porque o homem, ao contrário da visão idílica de Rousseau, não é um ser pacífico e benevolente. O homem hobbesiano é “o lobo do homem”.

            Tudo indica a preponderância da explicação do britânico. O mundo não tem sido o espaço adequado a que todas as pessoas obtenham os bens da vida que o consumo aponta como essenciais à sobrevivência. Há muita desigualdade, muita injustiça, muita iniquidade, muitos tributos e excessiva burocracia.

            Mas há receitas para atenuar o descalabro. Milagres são dificilmente obteníveis sem uma vontade política férrea e voltada à satisfação do bem comum. Apesar do cenário desfavorável, algo pode ser feito. Por exemplo: livrar o Estado de querer se ocupar de afazeres que não são próprios à finalidade para a qual foi concebido e é preordenado.

            O Governo deve responder pela ordem e segurança, pela justiça, em parte pela educação. Esta é direito de todos, mas dever também da família e da sociedade. Mas não faz sentido o Governo criar e sustentar empresas que mais eficientemente seriam geridas pela iniciativa privada.

            A pandemia requer ousadia e coragem. Para redesenhar o Estado, fazendo com que ele transfira a quem tenha condições de uma administração eficiente, todas as empresas hoje controladas pelo governo. Sabe-se – e não é preciso muito para comprovar – que tudo o que a administração direta faz é menos eficiente, mais dispendioso e não se livra da suspeita de alguma ilicitude. Há muito não se consegue enxergar a distinção entre o que é patrimônio público e o que é patrimônio privado.

            Mais ainda, o Estado precisa deixar de ser um agente de estoque de imóveis. Os setores responsáveis pelo Patrimônio Público sequer têm noção do que é propriedade do Estado. Têm de recorrer ao serviço de Registro de Imóveis que, exatamente por ser gerido por iniciativa privada, com desvinculação da burocracia estatal, funciona a contento.

            No momento em que a Nação terá de elaborar fórmulas de subsistência para a legião de invisíveis, excluídos e miseráveis que surgiram durante a peste, ela precisa se desvencilhar de um patrimônio imobiliário que é renda trancafiada. Transferir todo esse acervo para que a iniciativa privada, que teve de se reinventar para não perecer durante a Quarta Revolução Industrial, dê a ele um uso consentâneo com as necessidades do Brasil.

            O enxugamento do Estado converge com a urgência de reduzir o custeio de uma administração ineficiente e necrosada. A esperança de que o Secretário da Desestatização, Desinvestimento e Mercados, Salim Mattar, pudesse cumprir aquilo a que se comprometera restou frustrada. Mas renasce a esperança de que seu sucessor, Diogo Mac Cord, venha a conseguir aquilo que é imprescindível para uma República com pretensão a ser moderna e cuidar do futuro de gerações millenials, que já nascem como nativas digitais e que precisarão de nova formatação governamental.

            Anima a perspectiva de que várias frentes aparentemente pioneiras estão na mira desse órgão: a regularização fundiária, política até o momento não levada a sério pelo governo, para a qual o Parlamento ofereceu todas as ferramentas pertinentes, das quais é exemplo a Lei 13.465/2017. Os leilões eletrônicos de imóveis improdutivos e sujeitos a invasão, ocupação clandestina, ou mera deterioração. Mas o mais interessante é contar com a cooperação do mercado, naquilo que está sendo considerado uma “inversão da lógica” tradicional.

            O setor privado identifica uma área governamental ociosa e elabora um projeto que viabilize a sua destinação útil. Na licitação a seguir, o responsável pelo projeto entrará com prioridade para a aquisição da área.

            Quanto menos Estado – perdulário, pesado, antiquado e superdimensionado – houver, mais cidadania tem condições de aflorar. Afinal, depois de trinta e dois anos de Constituição Cidadã, está na hora de avançar alguns passos rumo à prometida Democracia Participativa. Aquela em que o cidadão terá oportunidades de atuar na gestão da coisa pública e não se resumirá a votar de quando em vez, a cada pleito com entusiasmo menor, pois descrente da Democracia Representativa.

_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020.   


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MAGISTRADOS ABANDONAM A TOGA

            O onipotente CNJ estaria a apurar conflito de interesses em relação a magistrados que abandonaram a toga e passaram a atuar em casos “bilionários” de recuperação judicial.

            Os comentários variaram, mas o tom de reprovação parecia predominar, principalmente entre os profissionais do direito. O tema se presta a uma serena reflexão.

            É natural que a Magistratura de primeira instância se sinta desconfortável no atual quadro da Justiça brasileira. A adoção de um sistema de quádruplo grau de jurisdição converte a sentença numa espécie de minuta, que passará – obrigatoriamente – pela Segunda Instância e, se o caso for de real interesse para as partes – leia-se: importância financeira – chegará, também de forma inevitável, à Terceira e Quarta Instâncias.

            Essa espécie de “minuta” em que se transformou a decisão que deveria ser a mais importante, é um fator de frustração para a Magistratura. Por que a mais importante? O juiz monocrático é aquele que toma conhecimento direto com os fatos, olha nos olhos das partes – ainda que, hoje, em parte virtualmente – e tem contato com as testemunhas. Apreende, como nunca mais se fará, o cerne do conflito. Penetra suas entranhas. A partir dele, tudo passa a ser narrativa teórica. Não mais a cena real, nunca mais a flagrância do fato.

            Essa é uma explicação para o desencanto daqueles que sonharam com a perspectiva de fazer justiça.

            Outra circunstância é o agigantamento das estruturas judiciárias. Com o crescimento vegetativo dos quadros, a relevância que um juiz possuiu em tempos heroicos desapareceu. Há juiz para tudo. As comarcas passaram a ser enormes coletivos de magistrados. O simbolismo se dilui. Nunca mais os tempos em que a autoridade municipal era o prefeito, o vigário e o juiz.

            Isso chegou aos Tribunais. Em São Paulo, trezentos e sessenta desembargadores, mais cento e quinze Substitutos em Segundo Grau. Mais Câmaras Extraordinárias. Passa a ocorrer o que acontece no aeroporto de Brasília: grita-se “Ministro!” e dezenas olham para atender a quem chamou.

            Acrescente-se o aumento do volume de feitos, o controle e fiscalização por parte das Corregedorias, as planilhas a serem preenchidas, a burocracia das prestações de contas, as reclamações das partes, dos advogados, da mídia, da sociedade. O Judiciário não está nos primeiros lugares da credibilidade e do apreço entre as instituições brasileiras.

            Compreende-se, portanto, que os jovens que se apercebem disso tudo tenham a coragem de se exonerar. Não se sentem confortáveis no exercício de uma função que vem sofrendo profundas mutações, seja no imaginário popular, seja na prática. O declínio dos valores atinge todas as esferas. Não é apenas o pai, o professor e o padre ou o pastor que sofrem desprestígio. É também o magistrado.

            Louve-se a coragem de quem se exonera. Deixa a vaga para alguém vocacionado. Pois ainda existem os que se satisfazem com a missão de realizar justiça, ainda que no varejo, no espaço que lhe foi reservado para tanto. Não fazem questão de enriquecer. Pois a Magistratura, como vocação, pode ser maravilhosa. Como profissão é sofrível.

            Melhor deixar a Magistratura para os vocacionados do que se comparar com CEOs de grandes conglomerados e reclamar dos vencimentos inferiores à sua capacidade e ao seu talento.

            Quem se considerar injustiçado na Magistratura – e isso vale para o Ministério Público, para as Defensorias, para as Procuradorias e todos os demais cargos reservados aos bacharéis em direito – deve procurar horizontes compatíveis com suas qualidades.

            Por isso não recrimino, longe disso, os jovens ex-juízes que foram enfrentar outros desafios. A iniciativa privada é inclemente para com aqueles que prometem desempenho e não correspondem às expectativas. É preciso estar atento, aprimorar-se continuamente, oferecer resultados, adaptar-se ao surpreendente, porque no mundo real, o inesperado é a regra.

            A toga deve ser reservada para os que ainda se maravilham com a restauração da ordem justa, ainda que a conta-gotas. Nada é mais gratificante por saber que alguém se sentiu justiçado, foi-lhe retirado um fardo e lhe foi restituída a confiança na Justiça dos homens. É uma significativa expressão do imperativo categórico kantiano. Adequada tradução da felicidade possível neste sofrido planeta.

_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2021-2022.  


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HUMANIDADE DIGITAL

            Novos tempos, novos desafios. A tecnologia avançava, mais em alguns nichos do que em outros. Mas a pandemia acelerou sua disseminação e criou opções até então pouco exploradas. Não é possível hoje, viver sem o mundo web.

            Antes de 2019, o Brasil já possuía mais mobiles do que população. Foi o que possibilitou a intensificação das aulas remotas, dos trabalhos no sistema Justiça, que produziu mais de setenta e cinco milhões de atos e, principalmente, do atendimento na saúde.

            Os millenials, que já nasceram com singular desenvoltura para o mundo virtual, encontraram opções e alternativas para simplificar a obtenção de bens da vida, para aperfeiçoar serviços e para tornar a vida comum afeiçoada à contemporaneidade. As crianças desta geração parecem já nascer com chips, tal a sua familiaridade com as redes.

            Um dos instigantes paradoxos destes tempos é o recrudescimento da violência. A violência física não pode ser negligenciada, observa Lucien Sfez. “É uma força exercida com certo prazer contra tudo o que é fraco (espiral: força, vida, extensão da potência, no sentido de Spinoza)”.

            Só que existem outras violências, algumas antigas, chamadas simbólicas, companhia permanente da espécie racional. Mas a violência intelectual ganhou singular contundência, com o emprego das vias digitais.

Embora a imensa maioria dos usuários das redes não tenha conhecimento preciso sobre as técnicas, nem acesso às mais recentes descobertas científicas, isso não impede que elas sejam utilizadas como instrumento de guerra.

            As TICs propiciaram uma verdadeira revolução nas teorias da informação e nas técnicas do pensamento. As práticas que o império comunicacional primeiro exaltou e depois viabilizou, provocam uma intensa perturbação da razão habitual. Elas impactam o pensamento, que se submete, passivamente, a uma eficiente manipulação.

            Para o professor de Ciência Política da Universidade Paris I, Lucien Sfez, está-se caminhando depressa para o “tautismo”, um neologismo que ele criou em “Crítica da Comunicação” e que “resulta da contração de autismo e tautologia, evocando um olhar totalizante, ou até mesmo totalitário. O tautismo é o mal absoluto, ameaçador, da sociedade da comunicação e das tecnologias da comunicação. Não nos surpreendamos que possa intervir aqui nas práticas de uma forma particular de tecnologias da comunicação, o que denomino “tecnologias do espírito”.

            Tudo se torna mais sério e mais insidioso, com o apelo à interatividade. Acena-se com a máquina para agregar os homens, torná-los mais próximos, mais polidos, mais cooperativos. O chamado é sedutor: vê-se “o homem e a máquina unirem-se por amizade, numa aliança que pouco a pouco se torna casamento, até a espera apaixonada dos filhos nascidos da fecundação recíproca”. Mas que cria é esta? Surge uma prole irada, raivosa, pronta a atacar quem não pense da mesma forma. Só que esse pensamento, poderia ser uma potência remota antes da vulgarização do uso das máquinas inteligentes. A partir daí, tornou-se hegemônico e excludente. Só dá espaço para quem partilha dos mesmos ideais e codivide idêntica aversão.

            Aquela malquerença passa a governar todas as outras. Elege-se o inimigo e ele deve ser exterminado. A contaminação dos espíritos opera um fenômeno facilmente apreensível: simples técnicas, elaboradas para unir, como ferramentas conceituais pertinentes para conformar um olhar determinado, convertem-se em tecnologias de visão totalitária.

            Hoje, todos estão conectados. A rede tem vida própria: é uma árvore pulsante, um organismo vivo com inúmeras ramificações. Um só toque e se pode atingir grupos inteiros. A velocidade com que as mensagens atingem número incrível de destinatários é tão inimaginável quantas as ramificações possíveis sobre as quais incidem.

            Um sistema conhecido por “rede” já por si constitui metáfora: não tem começo, nem tem fim. Circula sem ordem, com todas as suas ramificações e retransmissores impropriamente chamados “multimídia”, ou seja, um sistema aberto e incontrolável.   

            Como domar essa realidade, cujos desígnios não se subordinam à lógica tradicional, para que se extraiam das redes só os frutos bons, eliminando – ou pelo menos reduzindo – aqueles envenenados?

            Pois não deixa de ser veneno letal o que se veicula como fake News, maledicência, deboche, humor cáustico e humilhante, que aprofunda a divisão entre semelhantes que, por pensarem de forma diferente, não devem ser tratados como inimigos.

            O Brasil precisa, com urgência, de um plano consistente de obtenção de uma virtualidade essencialmente humana.

_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2021-2022.  


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EM BUSCA DA FAMA

            Uma sociedade narcisista rende culto inabalável à fama. Tornar-se celebridade é objetivo que tantos perseguem, na incansável busca por seus minutos de reconhecimento. Elias Canetti, em “Massa e Poder”, faz uma abordagem singular desse fenômeno.

            Pouco importa como obtê-la. Não faz diferença. O essencial “é tão-somente que o nome seja pronunciado. A indiferença quanto àqueles que o pronunciam, e particularmente a igualdade destes aos olhos do sedento de fama, revela estar nos fenômenos de massa a origem dessa sede”. Sim, é uma sede permanente. O sonho do sedento é que o seu nome desperte seguidores, reúna para si a massa.

            A fama tem uma vida autônoma, desvinculada daquilo que uma pessoa é de fato. A massa que satisfaz o apetite dos sequiosos de fama compõe-se de sombras, criaturas que nem sequer precisam estar vivas, bastando apenas que sejam capazes de uma única coisa: pronunciar um determinado nome. É desejável que o digam com frequência, se possível de forma frenética e sempre diante de muitas pessoas. O máximo da aspiração dos candidatos a famosos, é que se fortaleça a pronúncia de seu nome. Até se torne quase um substantivo, não mais um patronímico. Algo ao alcance de todos. Qual um signo, uma marca, um selo de identificação.

            Para o cortejador da fama, todavia, o que essas sombras habitualmente fazem – sua identidade sua aparência, seu trabalho, sua alimentação e até, eventualmente, sua obra – é algo que não lhe interessa. Não guarda pertinência com o propósito de chegar ao auge da fama.

            Para obter a fama, vale tudo. Transforma-se em alguém provido das mais excelsas qualidades. Exibe solidariedade humana. Mostra-se condoído pela sorte dos desfavorecidos. Disserta sobre as virtudes. Simula a modéstia que não tem e nunca teve. Não é difícil chegar a outras táticas, se a adulação se mostrar insuficiente. Suborna, prometendo pequenas vantagens, assim como a dimensão pessoal de quem aceita ser subornado. Semeia estímulos, se necessário, chicoteia. Tudo para formar um quadro fiel e submisso aos atributos do candidato a ser famoso.

            Não hesitará em dispensá-los todos, se vier a conservar a fama. Para ele, o séquito é acessório, serviu para edificar a reputação, o bom nome, a garantia de se destacar no oceano imenso do anonimato.

            Anonimato é palavrão para quem quer ser famoso. Pode até argumentar com o seu temperamento discreto, com sentir-se melhor na retaguarda, mas tudo como tática para alavancar a consecução da fama.

            É instigante a comparação que Elias Canetti faz entre o ávido pela fama e o rico. Este, coleciona bens e rebanhos, títulos e ações, prédios e iates. Tudo o que pode ser comprado com dinheiro. Se possível, com criptomoedas, que é mais fashion. Não lhe importam os seres humanos. É-lhe suficiente poder comprar alguns. Há sempre consciências à venda, colunas vertebrais complacentes. Pessoas que só se sentem bem ajoelhadas.

            O poderoso, ou o detentor de poder, coleciona seres humanos. Bens materiais só adquirem significado à medida que servirem como ferramentas úteis para a aquisição de humanos. Quem acumula poder quer homens vivos, de preferência que os precedam na morte. Os que já morreram ou os que ainda não nasceram não entram em seus cálculos.

            Já o famoso coleciona áulicos. Quer apenas ouvir o maior número de pessoas pronunciar o seu nome. Tanto faz se forem vivos, ou semimortos, aqueles desvalidos que, à falta de pão, agarram a utopia, vivem a fantasia e sua imaginação é capaz de suprir a falta de dignidade. Importa é que sejam suficientemente fortes para pronunciar o nome do famoso.

            A fama sempre foi algo presente no horizonte dos que insistem na desconsideração da morte. Crentes de que são imortais, toda a energia vital é direcionada a galgar os degraus da glorificação. Só que, antigamente, fazia-se questão de obter “boa fama”. O degringolar ético da sociedade contemporânea dispensou essa preocupação. Agora o que vale é a fama, qualquer que ela seja. A reputação perdeu valor, não se encontra à venda nem nas lojas de R$ 1,99. Ser conhecido, ainda que mal afamado, ser famoso, ainda que pairem suspeitas de idoneidade dúbia, o que está em jogo é poder ser identificado em todos os lugares, alcançar milhões de seguidores, ter um nome na ponta da língua de qualquer ser que consiga falar.

            Espécie insólita a humana. Mas assim é. Sempre foi. Sempre será.

_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2021-2022.   


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A HIPROCRISIA TRIUNFANTE

            A recente aprovação, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de lei que legaliza os jogos é um alento. Um Congresso que só cuida do próprio interesse, que não hesita em aprovar Fundo Eleitoral de seis bilhões, enquanto vinte milhões de brasileiros passam fome, não animaria os que defendem o retorno do jogo. Sou um deles. Na verdade, não é “retorno”, porque se joga abertamente no Brasil. Lotos, loterias, lotecas, páreos de cavalos de corrida, os jogos na internet, mostram que jogar é algo natural entre os humanos.

            Para os que duvidam disso, é interessante que leiam o livro “Homo Ludens”, de Johan Huizinga, um famoso historiador e linguista holandês, considerado um dos mais influentes pensadores da história da cultura moderna. Escreveu “O outono da Idade Média”e “Nas sombras do amanhã” e foi professor na Universidade de Amsterdã, de Groninguen e de Leiden. Em 1942 os nazistas ocuparam a Holanda. Foi expulso da cidade, o que é compreensível, pois nazismo não combina com talento e cultura. Preso pela Gestapo, ficou confinado na casa de um amigo, onde morreu pouco antes da II Guerra terminar. Legou-nos esta lição: além de ser homo sapiens, homo economicus, homo ethicus, o ser humano tem uma feição importante como homo ludens.

            Ele foi lúcido e sábio o suficiente para considerar o jogo um fenômeno cultural. Não é fruto da imaginação ou achismo. Parte de estudos etimológicos e etnográficos de sociedades distanciadas, cultural e temporalmente, das nossas. Jogar é algo inato ao homem e aos animais. Categoria absolutamente primária da existência, anterior mesmo à cultura. Foi o jogo que gerou a evolução da cultura.

            Suas frases são marcantes: “A existência do jogo é inegável. É possível negar, se quiser, quase todas as abstrações: a Justiça, a beleza, o bem. É possível negar-se a seriedade, mas não o jogo”.

            E o que é o jogo para Huizinga? “O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras e limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria de ter consciência de ser diferente do cotidiano”.

            Como o surreal é rotina em nossa Pátria, o jogo foi proibido no Brasil por influência de “Dona Santinha”, como era conhecida a “Primeira dama”, esposa de Eurico Gaspar Dutra. Com isso, mais de setenta mil brasileiros ficaram sem trabalho. Não eram apenas os que se dedicavam ao jogo nos maravilhosos cassinos, frequentados por estrangeiros de vários países. Eram também os cantores, os músicos, os garçons, os cozinheiros, o que afetou centenas de milhares de pessoas jogadas – sem trocadilho – à rua da amargura.

            A civilização não usa de subterfúgios e explora livre e naturalmente o jogo, fonte de receita para o Estado e fator de sobrevivência para milhões de profissionais. Só que o Brasil, assim como permaneceu décadas numa cegueira entrópica que o manteve afastado da modernidade, entende que o jogo é monopólio do Estado. Sob o pífio argumento de que haverá corrosão da moral, quer preservar a situação em que todos jogam, mas com a falácia de que o jogo é proibido.

            Indigência moral é restar inerte diante de vinte milhões de famintos, de quinze milhões de desempregados, de quantos milhões de desalentados, porque as promessas de vida digna não se concretizaram e estão a cada dia mais longe do horizonte dos abandonados à própria sorte.

            O jogo abriria milhares de empregos. Traria estrangeiros para os cassinos em cidades turísticas, fomentando essa indústria também abandonada, em face das notícias sobre violência, desmatamento, armamento geral da população irada, miséria e exclusão.

            Causa espécie que a CNBB se manifeste contra o jogo, alinhando-se à “Bancada Evangélica”, se a história da Igreja no Brasil é prenhe das quermesses paroquiais, onde nas barracas gestadas pelos fiéis, sempre havia a “tômbola”, um jogo que alimentou muitas obras pias e assistenciais católicas.

            O jogo familiar sempre foi uma prática rotineira no Brasil antes da televisão e da invasão digital que inebriou a população e deixou quase todos dependentes das telinhas.

            Espera-se que o Senado ratifique os 246 votos a favor da legalização, para que o homo ludens tenha a sua vez, aja às claras e não precise de subterfúgios para fazer aquilo que é intuitivo ao ser humano. E que essa maioria consciente de que é preciso oferecer perspectiva de dignidade aos desempregados, rejeite eventual veto por pressão do anacronismo.

            A atividade lúdica, para o Brasil de hoje, é a salvação para o clima de desalento geral. Assim que legalizado, apostem que os detratores cuidarão de explorá-lo também, pois sabem que ele é rentável e atrativo.

_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2021-2022. 


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DELENDA SÃO PAULO

            É paradoxal o status afetivo de São Paulo no coração dos brasileiros. Convicto de que “elogio em boca própria é vitupério”, não preciso enfatizar o que somos e o que representamos. Não só para o Brasil, mas para o mundo. Mas, é preciso reconhecer, humildemente, não agradamos a todos.

            A História é permanentemente revista. Nossos bandeirantes eram considerados os alargadores de fronteiras, os que tornaram letra morta o Tratado de Tordesilhas. Os que asseguraram esta imensidão de território, na verdade um continente, que permaneceu coeso enquanto as colônias espanholas se fragmentaram. Hoje, são apontados como violentos caçadores de índios, genocidas, brutos e cruéis.

            O Rio, capital da Colônia, do Vice-Reino, do Império e da República, sempre teve suas regalias por hospedar a elite e o poder. Durante a discussão no Parlamento imperial sobre a localização das duas Escolas de Direito que Pedro I queria criar, para formar a burocracia autônoma, desvinculando-se de Coimbra. São Paulo foi execrada: falava péssimo português, era terra provinciana, onde só chovia e cujo povo comia formiga. Foi preciso que Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, impusesse a verdade: São Paulo seria o berço ideal para as ciências jurídicas. Sua mocidade não teria os divertimentos da Corte, um atrativo para dispersar a vontade de estudar e aprender.

            Em 1932, São Paulo assimilava as mensagens de 1922, de 1924 e de 1930 e exigia uma Constituição democrática. Traído, lutou sozinho contra todas as forças que já se aninhavam, como continua a acontecer, no colo tutelar do governo da União. Os paulistas mostraram sua coragem, determinação, coerência e coesão, pois não foi um movimento restrito aos que pegaram em armas, lutaram e morreram. Foram as famílias paulistas, as mulheres paulistas, as crianças paulistas que sabiam estar em jogo algo muito mais importante do que a batalha cruenta. Era o fundamento democrático de uma sociedade civilizada que corria perigo. Não era maior do que o que agora ronda a Nação.

            A partir daí, apesar da proclamação de “vitória moral”, São Paulo paga um preço por haver repudiado a tirania. Foi acusado de separatista. Sua economia consegue carregar o fardo de um coronelato que ainda mantém estruturas de um Estado ineficiente, sugado pelo crescente agigantar-se de cargos, funções e burocracia. O discurso de “locomotiva da nação” não surgiu por acaso. É só comparar a performance bandeirante com a dos demais Estados-membros da Federação.

            Uma revanche contra São Paulo, que conclamou a nacionalidade a assumir um protagonismo pelo Estado de direito e pela democracia veio com a sub-representação de seus parlamentares dentro da Câmara Federal. É inadmissível que a Câmara dos Deputados, instância representativa do povo, subestime a importância paulista e emascule sua cidadania. São Paulo tem setenta deputados federais, embora sua população corresponda a praticamente um quarto dos habitantes do Brasil.

            Não se discute essa perversa diminuição da importância paulista junto ao Parlamento, absorvida num cenário político-partidário que só oferece testemunhos lamentáveis de retrocesso democrático.

            São Paulo continua a ser a meca de todos quantos necessitam do melhor tratamento médico-hospitalar do Brasil, comparável com os mais avançados do planeta. Possui três Universidades estaduais que são nicho de excelência e a Universidade virtual poderá seguir pelo mesmo caminho, se perfilhar a tradição de USP, UNICAMP e UNESP.

            A capital bandeirante, esta insensata conurbação de quase vinte e cinco milhões de seres humanos, pois a ocupação adensada não respeita fronteiras, frágeis e fictícias convenções formais de limites entre municípios, possui menos paulistanos do que provenientes de todos os lugares. É uma vis atrativa que explica seus encantos, mas também seus problemas.

            As críticas à Semana de 22, ressalvada a boa intenção de alguns, reflete – ao menos em parte – esse ressentimento contra São Paulo. Terra que também perdeu a coesão de 32. Há muitas dissensões em todos os setores. Naquilo que guarda pertinência com a minha vida profissional, vejo que outras regiões do País fazem convergir seu apoio a pretendentes aos cargos nos Tribunais Superiores. Esquecem-se diferenças paroquiais e somam-se esforços para o êxito da empreitada. Quando o candidato é paulista, os próprios conterrâneos elaboram dossiês para derrubar o concorrente. Por isso é que a representação paulista nas Cortes federais é desproporcional à importância do núcleo jurídico bandeirante.

            Quando surgirá alguém capaz de somar os anseios, de liderar este povo que trabalha, paga a conta e não vê retorno justo para o seu investimento?

_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2021-2022.