Blog do Renato Nalini

Ex-Secretário de Estado da Educação e Ex-Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Atual Presidente e Imortal da Academia Paulista de Letras. Membro da Academia Brasileira de Educação. É o Reitor da UniRegistral. Palestrante e conferencista. Professor Universitário. Autor de dezenas de Livros: “Ética da Magistratura”, “A Rebelião da Toga”, “Ética Ambiental”, entre outros títulos.


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O caos normativo

A missão atribuída ao Poder Judiciário é fazer incidir a vontade concreta da lei sobre as controvérsias. Dito assim, parece fácil. Mas de que lei falamos? O Brasil tem uma tradição normativa prolífica. Há norma para tudo. No sistema vigente, a Constituição é o ápice e fundamento de validade para todas as normas que vêm a seguir. Se uma lei não é compatível com a Constituição, ela não é apenas nula: ela não existe.

Mas o que o operário do direito enfrenta hoje é um problema grave: o excesso de normas. Ninguém consegue saber quantas e quais as leis vigentes na República. Todas as tentativas para se fazer uma Consolidação das Leis no Brasil falharam. A máquina de “fazer normas” não para de funcionar.

Este ano a Constituição fará 27 anos. Já está adulta. Nem por isso chegou a produzir todos os efeitos pretendidos. Há 5 anos, por ocasião do 22º aniversário, o quadro já era desanimador: haviam sido editadas mais de 4,15 milhões de normas, ou seja; 774 normas por dia útil. Em matéria tributária, foram produzidas 249.124 normas. Ou mais de duas normas tributárias por hora. Foram 13 as reformas tributárias até então. Foram criados inúmeros tributos. Cada norma tem, na média, 3 mil palavras. O termo “direito” aparece em 22% delas. E os temas por elas abordados vão de saúde, educação, salário, segurança, trabalho, tributação e meio ambiente. São verbetes que aparecem em 45% de toda a legislação.

A “Carta Cidadã” despertou o apetite do legislador. Antes da sua promulgação em 1988, editava-se uma norma geral para cada grupo de 300 habitantes. A partir de 1988, foi editada uma norma para cada grupo de 47 habitantes. Depois, querem que o juiz conheça a lei. É possível? O caos normativo deriva no caos judicial e a ambicionada “segurança jurídica” é uma ficção. Uma utopia cada vez mais longínqua neste Brasil de volúpia legiferante.

Fonte: Diário de S. Paulo | Data: 26/02/2015
JOSÉ RENATO NALINI é presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para o biênio 2014/2015. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.


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O governo é responsável

A Constituição da República assegura ao Poder Judiciário autonomia administrativa e financeira. É a regra explicitada no artigo 99 da Carta Federal. Repetida no artigo 55 da Constituição do Estado de São Paulo. Nada obstante a explicitude, a regra não é cumprida. Todos os anos, o orçamento do Poder Judiciário é mutilado pelos setores técnicos do Governo. Em São Paulo, enquanto o orçamento geral do Estado cresceu 97% nos últimos 7 anos, o destinado ao Judiciário teve acréscimo de 54%.

Não é diferente no âmbito federal. O governo cortou a proposta orçamentária do Judiciário para 2015. Noticia-se que esse corte abriria crise entre Poderes (OESP de 2.9.14). Em São Paulo, o custeio do Judiciário cresceu consideravelmente nos últimos anos, mercê de reposição de funcionários e instituição de benefícios como a gratificação cartorária e o adicional de qualificação.

Mesmo que a iniciativa de tais projetos de lei tenham partido da própria Justiça, eles foram examinados pela Assembleia Legislativa e houve sanção do Governo. Assim, os três Poderes são responsáveis por honrar compromissos que não resultaram de voluntarismo judicial, senão de trâmite regular de legítimo processo legislativo.

Compreende-se que o Estado tenha inúmeras incumbências e que este ano, devido à Copa e à estagnação geral, a arrecadação não tenha sido das melhores. Mas sustentar a máquina que não cresceu espontaneamente, mas foi fruto da vontade da tripartição de poderes é responsabilidade de todos.

Urgente o redesenho do sistema Justiça, que se tornou onipresente e que retroalimenta a excessiva judicialização, levando à apreciação dos juízes questões de foro íntimo das pessoas e outros assuntos que melhor seriam resolvidos mediante diálogo, sensatez e boa vontade. Mas enquanto não se reforma o Judiciário, que está a clamar pela profunda alteração estrutural nunca efetivada, é obrigação do Governo mantê-lo em atividade regular.

Tenho chamado a atenção da sociedade para que atente, seriamente, em relação ao modelo de Justiça que o Brasil adotou. Se ele tiver de continuar, ela que prepare seus bolsos. A conta vai crescer e o infinito é o limite para essa tendência a colocar um juiz em cada esquina, para melhor servir a cidadania sequiosa de justiça técnica.

JOSÉ RENATO NALINI é presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para o biênio 2014/2015. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.


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A sevidão consentida

O Estado é uma sociedade de “fins gerais”. O que significa isso? É que o Estado tem abrangência suficiente para acolher, em seu interior, as demais sociedades chamadas de “fins particulares” e, ainda, os indivíduos desvinculados de qualquer grupo. Dentro do Estado, todos devem ter a oportunidade de se desenvolverem em plenitude, atingindo os limites de suas potencialidades.

Essa é uma visão singela do Estado, nascido como instrumento posto à disposição das pessoas, para que elas não sejam impedidas de alcançar seus objetivos. Sozinho, o indivíduo é frágil. O grupo o fortalece. Mas o Estado é mais forte ainda. Para domá-lo, deve ser concebido qual mero instrumento de fazer as pessoas felizes. O Estado é sempre meio e nunca pode se converter em finalidade.

É lícito, em teoria, pensar se em alcançar um nível tal de civilização, que o Estado viesse a se tornar desnecessário. Isso quando a população adquirisse um grau adequado de autogestão, a pressupor uma comunidade capaz de conviver em harmonia, sem o freio do poder e sem o monopólio da violência exercido pelo governo. Estamos longe desse estágio. Há quem pense que tenhamos regredido. É que o Estado cresceu demais, tornou se insubstituível.

Há dependência extrema das pessoas em relação ao governo. Ele se compraz disso e estimula a servidão consentida. Nítidos os sintomas. Desapareceu o mérito. Tudo depende das relações, das indicações, do compadrio, do favoritismo, da fidelidade a algumas causas de interesse localizado. Não se prestigia o trabalho. Os direitos são usufruídos sem qualquer contraprestação. O Estado onisciente, onipotente e onipresente normatiza tudo.

Interfere em todos os aspectos da vida pessoal e o indivíduo parece confortado e feliz por não ter de investir em nada. Principalmente, investir em si mesmo. Libera se da obrigação de se responsabilizar pelas opções feitas nas eleições. Estas são decididas pelos marqueteiros, desde que haja tempo suficiente de televisão para “vender o produto”.

Daí a avidez com que se disputa um segundo ou um minuto, com total desapreço à lisura das alianças. Para um povo infantilizado, que talvez se pretenda ver a cada dia mais servil, a solução de um Estado todo poderoso é uma solução, é uma receita confortável, mas esterilizante do sonho de uma verdadeira cidadania. E sem cidadania protagonista, como implementar a Democracia Participativa prometida pelo constituinte?

JOSÉ RENATO NALINI é presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para o biênio 2014/2015. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br

Imagem: http://www.freeenglishsite.com/ Créditos: Rob Sinclair

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