Grande é o poder da memória. Tanto que Agostinho diz: “eu me lembro de ter me lembrado”. Pois “o espírito é a própria memória”. A memória faz o ser humano feliz. Mas é perseguida por esse predador do tempo, o esquecimento, “que amortalha nossas lembranças”.
O que é uma lembrança perdida? A dracma da parábola, por exemplo, senão algo que de certa maneira estava na memória? Encontrá-la é, na verdade, reencontrá-la: “este objeto estava perdido para os olhos: a memória o guardava”.
Agostinho ousa o paradoxo: se nos lembramos do esquecimento é porque é a memória que o guarda. Medimos os tempos quando eles passam e é no interior da alma que se encontram – na visão agostiniana – as 3 orientações do mesmo presente: presente do passado na memória, presente do futuro na antecipação, presente do presente na intuição.
A alma é como o tempo: ele próprio, passagem do futuro para o passado através do presente. Mas o que é o tempo? A horizontalidade do tempo, que é também a da narrativa, é recortada no presente pela verticalidade da eternidade. O tempo impõe perdas. Perdas vitais. Seres queridos. Partes de nós mesmos. Quantas vezes não se sente possuir mais intimidade na transcendência do que no efêmero presente? Viver muito é sujeitar-se à multiplicação de perdas.
Todavia, o tempo é o próprio lenitivo a essas perdas. O desespero inicial, se não leva à loucura, age como cicatrizante. Aos poucos se atenua a dor. A miséria da condição humana – ou sua maior riqueza?… – faz com que a atenção se volte para o trivial. Pequenas coisas, até desprezíveis, vão tomando o lugar daquele sofrimento insuportável e, quando se vê, continua-se a respirar, a se banhar, a se vestir, a se alimentar. Às vezes, até como autômatos, aos quais uma energia invisível deu corda. Mas o corpo se reergue e prossegue.
Perdas há, que ainda não têm remédio. Uma delas é a perda da memória. Deletam-se as datas, os nomes, os fatos, as lições. Tudo se torna nebuloso e indefinido. Solução natural para não se apegar ao lado triste do existir? Desligamento gradual e involuntário do imenso milagre da vida? Castigo ou enfermidade? Só o futuro dirá.
José Renato Nalini é Desembargador da Câmara Especial do Meio Ambiente do Tribunal de Justiça de São Paulo e autor de “Ética Ambiental”, editora Millennium. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.